Na rua onde moro existe um lava a jato muito antigo e tradicional. Levo meu carro lá, mas só quando a situação se torna insuportável. Parto do pressuposto de que se não lavo a minha casa por fora, não será o meu carro que vou lavar. Que a chuva faça o que deve ser feito. Durante os momentos mais agudos da enchente, quando faltava água nas torneiras de boa parte da cidade, a lavagem não parou. Minha primeira sensação foi de alegria por ver pessoas trabalhando enquanto tanta gente não conseguia sequer se mover. Depois, veio a indignação. Era um absurdo, naquele momento, desperdiçar água. Porque nesse lugar, o lava a jato é lava a jato mesmo. Mangueira larga e com grande pressão.
A natureza nos mostra que a fronteira entre competição e cooperação é volátil e, muitas vezes, inexistente
Fiquei tentado a dar uma enquadrada neles. Antes, passei a observar com mais atenção o que acontecia. Vi um senhor entrar ali com um galão vazio e saindo com ele cheio de água. Algumas horas depois, formou-se uma pequena fila de pessoas com garrafas, potes e bombonas. Todos eram atendidos. Descobri, conversando com uma vizinha, que o lava a jato conta com um poço artesiano. É dali que retira a água para lavar carros, a mesma que garantiu o abastecimento de boa parte da região quando tudo colapsou. Não é água potável, mas ajudou muita gente. Uma vez ouvi de um colega uma frase que serve para a vida: "O jornalista deve ser o último a se indignar". Antes de julgar, é preciso compreender.
A enchente nos ensinou antigas lições. Vizinhos que mal se falavam começaram a conversar. E a se ajudar. Comprar com “um clique” pela internet é bom, mas foram a loja da esquina e o fornecedor mais próximo que nos garantiram o abastecimento quando o aeroporto fechou e as estradas ficaram interrompidas. Mais uma vez, a importância das redes e dos ecossistemas se mostrou fundamental. Não se trata aqui de escolher entre um e outro, mas de compreender que tanto o mercadinho físico da esquina quanto o portal de compras digital são importantes. Nada de novo. A natureza nos mostra que a fronteira entre competição e cooperação é volátil e, muitas vezes, inexistente. Depende do nosso olhar. E dos nossos atos.