Uma dica para os últimos dias da 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, que termina nesta quarta-feira (20): O Número Dois, romance do escritor francês David Foenkinos que brinca — não sem crueldade — com a mitologia em torno da saga Harry Potter, um fenômeno criado pela autora britânica J.K. Rowling em 1997 que vendeu mais de 600 milhões de exemplares e deu origem a uma franquia cinematográfica que arrecadou US$ 7,7 bilhões nas bilheterias.
Publicado pela editora gaúcha L&PM e traduzido por Joana Angélica D'Avila Melo, O Número Dois (224 páginas, R$ 69,90) mistura ficção e realidade. Autor de O Potencial Erótico da Minha Mulher, Charlotte e O Mistério Henri Pick, Foenkinos, 50 anos, parte de um fato: uma entrevista (que tem um trecho reproduzido na página 79) realizada em 2016 na qual Janet Hirshenson, diretora de elenco do primeiro filme da cinessérie, Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001), revela que, ao buscar um ator mirim para o papel principal, os produtores chegaram a selecionar dois candidatos. Um deles era Daniel Radcliffe, o outro não teve o nome divulgado.
A partir daí, o romancista imagina como teria sido a frustração e a vida do menino que não foi selecionado. Como bem resume o material de divulgação, "é a história de um homem que conviveu a vida inteira com a punição e a dádiva do anonimato, tendo como contraponto a glória do ator escolhido".
Esse personagem fictício é Martin Hill, 10 anos, que leva uma vida pacata em Londres, onde mora com o pai, John, contrarregra na indústria do cinema. A mãe, Jeanne, é uma jornalista francesa que vive em Paris. No começo do livro, Foenkinos conta a história de paixão e desencanto do casal, na qual já transparece sua habilidade para confeccionar reflexões simultaneamente amargas e delicadas — e sobretudo pertinentes. Por exemplo, quando descreve a cerimônia íntima de casamento embalada por uma canção da banda The Cure, informa que nenhum dos noivos ou dos convidados pensara em levar uma máquina fotográfica. "Talvez fosse melhor assim: sem vestígio físico da felicidade, reduz-se o risco posterior de ser submergido pela nostalgia."
A vida de Martin vira de ponta-cabeça quando, por um acaso do destino, ele precisa acompanhar o pai no set de filmagem da comédia romântica Um Lugar Chamado Notting Hill (1999). O guri, que usa óculos de aros redondos como os de Harry Potter, entra no radar de David Heyman — este sim, um personagem real, embora em versão ficcional. Trata-se do produtor de cinema que, por insistência de sua secretária, Ann, leu o primeiro livro de Rowling e decidiu transformá-lo em filme.
Os bastidores romanceados por David Foenkinos são atraentes mesmo para quem não é fã do bruxo mirim — e já não deve existir gente que nunca tenha ouvido falar do mundo secreto de Hogwarts. No fundo, ainda que espelhe bastante a trajetória de Harry Potter na vida de Martin Hill, o escritor fez um livro que aborda temas universais, alguns perenes e outros bem contemporâneos, como o impacto do divórcio dos pais, o conceito de doppelgänger (o "duplo ambulante" que cada um de nós tem por aí), a depressão, o culto à imagem e ao consumo, aquela sensação terrível de quase ter conquistado algo — seja o sucesso, o amor, um emprego. "É uma coisa de enlouquecer, isso de perde tanto por tão pouco", define o narrador.
No caminho, trilhado em capítulos curtos, Foenkinos empilha observações e trechos dignos de nota. Como este da página 53: "Quando o filho era bebê, John ia a toda hora verificar sua respiração. Com o passar dos anos, jamais renunciara a esse ritual noturno. Aos seus olhos, nada igualava o espetáculo do filho embalado pelos sonhos. Era uma contemplação que detinha o poder de repelir a amargura. Nesse instante, o real se oferecia com fulgurante simplicidade, livre de incertezas. John era fascinado pela profundidade dos sonhos das crianças. Podia-se tocar clarineta ao pé de seus ouvidos (sem dúvida, isso era raro, exceto nas famílias de melômanos perversos), e elas continuavam abrigadas no compartimento reservado de sua noite. Talvez fosse isso, afinal, a maior força da infância: um sono tão absoluto. Nada pode nos acontecer, quando dormimos desse jeito. Em que momento da vida perdemos tal capacidade? Por volta dos catorze, quinze anos. A crise da adolescência talvez venha daí, dessa fuga do repouso perfeito. John não dormia assim havia muito tempo. Nunca mais se aproximara daquela profundeza noturna para onde não se leva nada do dia".
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