Estreia nesta quinta-feira (3) nos cinemas Até que a Música Pare (2023), filme da diretora e roteirista gaúcha Cristiane Oliveira ambientado na Serra e quase todo falado em talian, língua surgida há cerca de 150 anos da mistura do português com os dialetos dos imigrantes italianos.
Produzido pela Okna Produções em coprodução com a empresa italiana Solaria Films, este é o terceiro longa-metragem de Cristiane. Os anteriores são Mulher do Pai (2016), vencedor dos prêmios de direção, atriz coadjuvante (Verónica Perrotta) e fotografia (Heloísa Passos) no Festival do Rio, e A Primeira Morte de Joana (2021), ganhador de três Kikitos no Festival de Gramado: melhor fotografia (Bruno Polidoro), melhor montagem (Tula Anagnostopoulos) e o troféu da crítica. Até que a Música Pare também foi premiado em Gramado, mas na Mostra Gaúcha: melhor atriz (Cibele Tedesco) e direção de arte (Adriana do Nascimento Borba).
Cibele e Hugo Lorensatti, ambos egressos do grupo teatral Miseri Coloni, de Caxias do Sul, interpretam o casal Chiara e Alfredo. Depois que o último filho sai de casa, ela decide acompanhar o marido nas viagens como vendedor pelos botecos serranos. Na bagagem, levam uma crise, por causa da maneira como lidam com o luto pela morte de outro filho. No caminho, como diz a sinopse, "uma tartaruga e baralhos de carta colocarão à prova mais de 50 anos de vida a dois".
O elenco de Até que a Música Pare inclui participações de Elisa Volpatto, atriz gaúcha que encarnou a policial Anita na série Bom Dia, Verônica (2020-2024), e de Nicolas Vaporidis, ator italiano visto em Todo o Dinheiro do Mundo (2017), de Ridley Scott. O filme foi rodado nas cidades de Antônio Prado, Veranópolis, Nova Roma do Sul e Nova Bassano, durante a pandemia de covid-19, o que constituiu um desafio para a produção.
_ Com baixo orçamento para a estrutura de que precisávamos e com muitos atores idosos, era um medo constante para mim que algo saísse do planejado ou que alguém tivesse algum problema de saúde. Fomos muito rígidos nos controles exigidos na época e deu tudo certo _ contou Cristiane à coluna.
Confira, a seguir, a entrevista concedida por e-mail:
Qual foi a inspiração para Até que a Música Pare?
O que pode abalar o amor de uma vida inteira? Quais são os limites da nossa tolerância? Com essas questões em mente surgiu o roteiro de Até que a Música Pare, uma ficção inspirada em acontecimentos reais ocorridos na família de uma amiga da Serra Gaúcha. A família foi surpreendida ao descobrir que seu avô, um comerciante, vendia um de seus produtos sem nota fiscal. Ele também era ex-dono de um mercado fechado pelo filho. Tendo como pano de fundo as tensões provocadas pela política nacional, fui desenvolvendo um projeto que entrelaça inquietações. Se na democracia o tamanho do crime importa, no amor será que importa? Ao situar esses assuntos na intimidade de um casal de idosos, foi natural incorporar um pouco do humor irônico próprio da comunidade retratada: os descendentes de imigrantes italianos que se fixaram no Sul do Brasil, muitos católicos e falantes de talian. Com esses elementos, foi se desenhando a jornada de uma mulher madura, Chiara, que, após perdas difíceis, tenta encontrar algo novo em que acreditar. É uma fábula humana contemplativa que investiga a ética e a complexidade do amor.
Por que decidiu fazer grande parte do filme ser falado em talian? Qual foi o maior desafio para os atores e para a direção?
Ao iniciar a pesquisa na região para desenvolver o roteiro, em 2017, vi que muitas pessoas na faixa etária dos personagens ainda falavam talian. Então, senti que deveria registrar essa sonoridade no filme. Foi uma lapidação a várias mãos, que precisou de tempo mas se deu de forma bem tranquila. Hugo Lorensatti criou a primeira versão em talian de seus diálogos, pela intimidade que tem com a língua, devido à sua ascendência e ao trabalho no grupo teatral Miseri Coloni, que desde os anos 1980 se apresenta em talian. A versão teve supervisão do escritor e professor de talian Juvenal Dal Castel (via apoio da Contalian) e da linguista e professora universitária Loremi Loregian-Penkal (apoio Unicentro), que também colaboraram na versão de diálogos dos demais personagens. Por fim, para qualquer dúvida ou improvisações no set de filmagem, contamos com a professora Maria Inês Bernardi Chilanti, que vive em Antônio Prado, cidade que foi nossa base. O objetivo era que o casal protagonista tivesse o mesmo tipo de talian, pois é uma língua que pode variar de acordo com a origem da família. Com relação aos figurantes, cada um falava do seu jeito mesmo, sem intervenção. Assim, se deu o nosso trabalho para manter essa língua viva como patrimônio cultural na contemporaneidade.
Um dos aspectos bacanas da tua trajetória é a descentralização geográfica e a variação de cenários. A Mulher do Pai se passa na região da fronteira com o Uruguai, A Primeira Morte de Joana está ambientado entre Osório e Santo Antônio da Patrulha, e agora Até que a Música Pare foi filmado em Antônio Prado, Veranópolis, Nova Roma do Sul e Nova Bassano. Tu podes falar um pouco sobre o que motiva esse olhar para fora de Porto Alegre ou de locais mais usuais?
Até que a Música Pare é o último filme de uma trilogia em que histórias sobre luto trazem aspectos das diferentes colonizações do Rio Grande do Sul. No primeiro, Mulher do Pai, a fronteira aberta entre Brasil e Uruguai evoca a colonização ibérica no pampa gaúcho; no segundo, a família de A Primeira Morte de Joana tem traços dos ancestrais alemães que se fixaram no litoral; e no terceiro, a história de Chiara e Alfredo se desenvolve em uma comunidade de origem italiana da Serra Gaúcha. Essa cartografia audiovisual não foi planejada. O primeiro surgiu já como um filme de fronteira, mas o segundo teve a questão da imigração incorporada ao roteiro apenas no contato com as pessoas da locação escolhida. Já no Até que a Música Pare, como a família é um pilar muito importante na cultura dos imigrantes italianos, achei que deveria manter a história no cenário de onde veio a inspiração.
E já existe um novo cenário em vista?
Sim, as regiões do Alto Uruguai e das Missões, inspirada por fatos que ocorreram com os meus bisavós paternos nessas áreas.
Voltando a Até que a Música Pare: temos uma protagonista tipicamente cristã que acaba descobrindo no budismo uma forma de lidar com o luto pela morte do filho, por meio da possibilidade de reencarnação dos seres humanos em animais. Por que a escolha por uma tartaruga?
Uma vez ouvi uma história sobre um motorista profissional que viajava com uma tartaruga. Achei que esse fato dialogava diretamente com a compaixão por todos os seres vivos que o budismo traz em seu cânone. Além disso, a fragilidade da tartaruga do filme se conecta com a vontade de cuidar que Chiara tem e, assim, ela vai criar sua própria forma de lidar com o luto. Há também a questão dos cuidados especiais para se ter aquela espécie de tartaruga em casa, devido ao perigo de extinção. O que desencadeia mais uma das problemáticas do casal.
Além da crise familiar provocada pela morte de um filho, há esse contraste religioso e, em dado momento, Chiara também passa a questionar a postura de cidadão do marido, o Alfredo. O filme se arrisca a alguns comentários políticos, com menções ao conservadorismo e ao bolsonarismo. Pode falar sobre esses aspectos da trama?
Cresci próxima a várias religiões, percebendo como elas lidam com a questão da dor emocional. Porém, nossa intimidade é sempre atravessada pelo contexto em que vivemos. Então, Até que a Música Pare traz o contraste dessa abordagem com outra expressão que se dedica ao sofrimento humano: a filosofia. Discursos religiosos muitas vezes estão mais voltados a nos fazerem aceitar ou superar, enquanto a filosofia nos ensina a questionar. Esse contraste me tocou muito na escrita do roteiro. Em especial, pelo momento histórico em que o filme é situado, após as eleições de 2018 (quando Jair Bolsonaro foi eleito para a Presidência), no qual Deus começou a ser evocado constantemente nos discursos políticos para justificar violências. Essa foi, para mim, uma grande virada daquele momento: a manipulação política massiva por meio da fé das pessoas, algo extremamente perigoso. Não apenas por trazer de quebra um preconceito contra todos que têm crenças diferentes das cristãs, mas também por distanciar potenciais eleitores de um pensamento crítico sobre a realidade contemporânea.