Segundo informações de bastidores, Carvão (2022), que entrou em cartaz nesta quinta-feira (3) no CineBancários e no Espaço Bourbon Country, em Porto Alegre, era um dos dois títulos mais cotados para competir pelo Brasil na disputa por uma vaga no Oscar de melhor filme internacional. Se a Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais não tivesse escolhido Marte Um, o país continuaria bem representado e bem traduzido na tela, mas trocando os sonhos, as estrelas, o afeto e a esperança por outras marcas não tão vistosas: o absurdo, a violência, a hipocrisia.
Vencedor dos troféus de roteiro, atriz coadjuvante (Aline Marta Maia) e direção de arte no recente Festival do Rio, Carvão é o primeiro longa-metragem da paulista Carolina Markowicz, realizadora premiada pelos curtas Edifício Tatuapé Mahal (2014, com Fernanda Salloum) e O Órfão (2018) — este último recebeu a Palma Queer em Cannes — e cocriadora da série cômica Ninguém Tá Olhando (2019), ganhadora do Emmy Internacional. No Festival de San Sebastian, na Espanha, ela declarou à revista estadunidense Variety:
— Não há mais absurdo no Brasil. Carvão é a minha tentativa de compreender isso. Como chegamos a esse ponto? Ouvimos nosso presidente dizer que preferiria ter um filho morto a um filho gay. Ouvimos o executivo da maior seguradora de saúde dizer que foram orientados por seus CEOs a deixar as pessoas morrerem durante a pandemia porque "morte é alta hospitalar".
Carvão foi rodado em Joanópolis, interior de São Paulo, perto da cidade onde a cineasta cresceu. Em entrevistas, Markowicz comentou:
— Esse ambiente bucólico, mas ao mesmo tempo agitado, fez de mim uma observadora da natureza humana no seu melhor e no seu pior. E também uma admiradora de um senso de humor áspero, áspero e ácido, capaz de retratar todos os maiores desastres humanos e idiossincrasias de uma maneira bastante estranha. Lá, vivenciei tudo o que uma pequena cidade conservadora pode oferecer: pessoas cuidando da vida umas das outras, famílias unidas pelo fato de que "a família deve ficar unida", casamentos onde os casais quase se odiavam. E claro: você pode ser um assassino, mas, por favor, não seja gay.
A ambientação e a caracterização dos personagens são trunfos do filme. Os cenários são extremamente autênticos, assim como os figurinos e a prosódia: dá gosto ouvir diálogos carregados de coloquialidade e improvisos (ora cômicos, ora explosivos). Contudo, o naturalismo empregado por Markowicz tende a alongar um pouquinho a duração de algumas cenas, fazendo os 107 minutos de projeção parecerem exagerados.
Mas a história e e elenco compensam.
A protagonista, Irene, é interpretada por Maeve Jinkings, de O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), premiada com o Candango de melhor atriz no Festival de Brasília por Amor, Plástico e Barulho (2013). Ela e o marido, Jairo (Rômulo Braga, Candango de melhor ator por Elon Não Acredita na Morte, em 2016), vivem de uma pequena carvoaria no quintal de casa. Os dois têm um filho de seus oito, nove anos, o esperto Jean (o estreante Jean de Almeida Costa), e o pai dela, doente, não sai mais da cama, não fala, não ouve.
Em uma das primeiras cenas, a família recebe a visita de uma agente de saúde, Juracy (Aline Maria Marta, de Casa de Antiguidades). Ela veio para saber do estado do patriarca, verificar o oxigênio etc. Quando ouve Irene falando que o pai agora "vai dar uma melhoradinha", Juracy choca a protagonista e o público com uma inesperada sinceridade:
— Ah, não vai não. Com essas fraldas vazando e respirando esse cupim que salta da madeira podre?
Daí que Irene e Jairo acabam tentados a aceitar uma proposta lucrativa, mas de risco: hospedar em sua casa um desconhecido. Para o espectador, contudo, o sujeito já tinha sido bem apresentado: Miguel, vivido pelo argentino César Bordón, de Relatos Selvagens (2014), é um chefão do tráfico de drogas que forjou a própria morte durante uma matança.
Está aí a violência, e o tanto de inverossimilhança percebido no desenrolar da situação pode entrar na conta do absurdo. Onde Carvão brilha é no retrato das nossas hipocrisias: os personagens escondem segredos e desejos de todos. Não só dos vizinhos, como o casal formado pela ótima Camila Márdila (de Que Horas Ela Volta?) e Pedro Wagner, mas dos próprios familiares. A crítica não fica restrita à sociedade, também atinge as instituições, e quase nunca é verbalizada — Markowicz, o diretor de fotografia Pepe Mendes e o montador argentino Lautaro Colace sabem captar as contradições expressas no movimento e no rosto dos atores, sabem usar os recursos de edição para tecer o contraponto irônico. Um exemplo bem acabado ocorre quando Irene está falando com um padre que diz conhecer os problemas financeiros da protagonista, pois sua igreja está sempre precisando de doações. Então, a imagem corta dessa conversa para um plano aberto que exibe a opulência da catedral.