Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção "A Copa da minha vida" é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Eu estaria mentindo se dissesse que minha Copa inesquecível é a de 1950 ou a de 1974.
Apesar de estarem nítidas na memória as cenas do Maracanazo — Obdulio Varela pegando calmamente a bola após o gol do Brasil; Gigghia avançando pela direita para chutar no cantinho entre o poste e Barbosa; o goleiro, ao erguer-se depois da virada uruguaia, intuindo que para o resto da vida seria considerado culpado por torcedores e jornalistas (e o fato de ele ser negro certamente contribuiu para que cumprisse uma pena perpétua por um crime jamais cometido) —, eu não estava lá, na verdade sequer estava nascido, para me deixar machucar pelos contornos trágicos daquela final.
E apesar de estarem na ponta da língua muitos dos jogadores da revolucionária Laranja Mecânica (Cruijff, Rensenbrink, Rep, Neeskens, Krol e Jongbloed) que não ganhou a taça, mas o coração do mundo, sei que isso foi fruto não do Mundial em si, realizado quando eu ainda era um bebê de colo, mas dos incontáveis campeonatos de botão disputados, a partir de alguns anos depois, contra meu pai num Xalingão — ah, que saudade daquele time panelinha da Holanda!
Mas eu também estaria mentindo se dissesse que tenho uma Copa inesquecível. Todas as que vi (sempre pela TV) deixaram lembranças duradouras, sedimentadas pelos replays e pelas repetições nos telejornais. São cenas e personagens que acesso sem precisar recorrer ao YouTube ou ao Google — foi a regra que me impus para escrever este texto.
As minhas recordações começam em 1982 (de 1978, a única coisa que realmente guardei na memória foi o álbum de figurinhas). Lembro do Naranjito — inclusive eu tinha um boneco do mascote espanhol. Lembro dos goleiros Pfaff (Bélgica), N'Kono (Camarões) e Koncilia (Áustria), porque naquela época eu adorava jogar no gol nos campeonatinhos de três dentro, três fora. Lembro vagamente do jogaço Alemanha 3x3 França, pelas semifinais, só decidido nos pênaltis (a primeira vez na história dos Mundiais), mas lembro vividamente — infelizmente — daquela fatídica tarde no Sarriá. Nem preciso falar dela aqui, porque outros autores já trataram desse trauma nacional.
De 1986, lembro do gol não dado do espanhol Michel contra o Brasil, do pênalti perdido por Zico contra a França, da Dinamáquina amassando o Uruguai e depois sendo amassada pela Espanha de Butragueño, mas tudo fica em segundo plano diante do show de Maradona no duelo com a Inglaterra: primeiro com a mão de Deus, depois com o pé divino.
A Copa de 1990 foi chata pra caramba, né? Não à toa, é dona da menor média de gols (2,21, o número eu tive de pesquisar no Google). Mas pelo menos teve Camarões, de Roger Milla — que quebrou a banca do folclórico goleiro Higuita, da Colômbia — e Goycochea pegando pênaltis para levar a Argentina à final.
Eu resumo 1994 a um canhoto (Hagi: quando eu jogava bola, queria ser como o camisa 10 da Romênia), a um baixinho (Romário), a um rugido (o de Maradona ao marcar contra a Grécia) e a um grito (o de Galvão Bueno após Roberto Baggio mirar a lua na cobrança de seu pênalti: "É tetra!").
As imagens de 1998 são mais tristes: o goleiro Zubizarreta sozinho no gramado, desacorçoado pela eliminação da Espanha na primeira fase, para a qual contribuiu o frango que havia tomado na derrota por 3 a 2 para a Nigéria, na estreia; Ronaldo pechando com o goleiro Barthez, cena símbolo da convulsão sofrida pelo centroavante antes da final e de como o Brasil foi atropelado pela França.
O filme de 2002 é o da redenção de Ronaldo. Em 2006, ganhei mais do que lembranças: também faturei o bolão da Copa! Em 2010, ao som das inesquecíveis vuvuzelas, vi a Espanha que tanto adoro ser campeã — antes, vi Suárez protagonizar um dos lances mais marcantes de todas as Copas (nem preciso descrever aqui, né?). Em 2014, o uruguaio voltaria a ser, digamos, estrela: a mordida no italiano Chiellini foi um dos fiascos em um Mundial de uma goleada vexatória (nem preciso descrever aqui, né?). De 2018, não esqueço do pique do Mbappé contra a Argentina, do cai-cai do Neymar e da excitação diante da estreia do VAR — que é muito mais benéfico do que negativo para o futebol.
E o que vai ficar de 2022? Ainda é cedo, não tenho o distanciamento necessário, mas acredito que jamais vou esquecer das viradas da Arábia Saudita e do Japão sobre a Argentina e a Alemanha. Esses duelos à la Davi contra Golias sempre me emocionam, e a emoção é o adubo da memória.