Estreia nesta quinta-feira (14) no Espaço Bourbon Country e entra em cartaz no dia 29 de julho na plataforma MUBI Crimes of the Future (Crimes do Futuro, 2022), filme que marca a volta do diretor David Cronenberg, 79 anos. Seu último longa-metragem havia sido Mapa para as Estrelas (2014). Depois, assinara — e estrelara — apenas o genial e tocante curta de 56 segundos The Death of David Cronenberg (2021), no qual ele se despede de seu próprio cadáver.
Pois bem: Crimes of the Future é uma espécie de testamento, um sumário da carreira do cineasta canadense. Retoma o título de seu segundo filme, datado de 1970 (e lançado no Brasil como Crimes do Futuro). Cruza ficção científica com o subgênero do body horror, o horror corporal, como em Enraivecida na Fúria do Sexo (1977), Scanners (1981), Videodrome (1983), A Mosca (1986) e ExistenZ (1999). Trata de perversões sexuais, a exemplo de Calafrios (1975), Gêmeos: Mórbida Semelhança (1988) e Crash: Estranhos Prazeres (1996). E traz no papel principal Viggo Mortensen, que trabalhou com Cronenberg em Marcas da Violência (2005), Senhores do Crime (2007) e Um Método Perigoso (2011).
A primeira exibição do filme foi na competição do Festival de Cannes, onde ganhou o Prêmio Especial do Júri por Crash, do qual Crimes of the Future é um parente muito próximo — o roteiro foi escrito na mesma época, e novamente Cronenberg mistura sexo e máquinas, faz do corpo um cenário para a violência, aborda a conexão entre prazer e dor e pergunta: qual é o limite? Qual é o nosso limite?
Em Crash, um grupo de pessoas se excita com a reconstituição de acidentes de carro. Em Crimes of the Future, a cirurgia virou o novo sexo. Em ambos os filmes, Cronenberg apresenta cenas chocantes que podem perturbar ou até provocar náusea em espectadores sensíveis.
A trama se passa em um futuro incerto, onde o avanço da biotecnologia — que fez sumirem as doenças infecciosas e a dor física — contrasta com a degradação urbana. É como se as pessoas só estivessem olhando para seus próprios umbigos. Literalmente: uma pessoa instalou um zíper na barriga. Outra só tem ouvidos para si mesmo: implantou múltiplas orelhas.
Um artista da bizarrice é Saul Tenser, o protagonista interpretado por Viggo Mortensen. Na companhia de Caprice (a atriz francesa Léa Seydoux, a Madeleine dos dois últimos 007), que opera o bisturi com inegável tesão, realiza performances públicas nas quais são extirpados, sem anestesia, os novos órgãos que seu corpo passou a produzir como resultado de uma mutação genética. Para lidar com essa condição que provoca sofrimento e problemas respiratórios e digestivos, ele conta com uma série de dispositivos biomecânicos especializados, incluindo uma cadeira que se contorce e gira enquanto o ajuda a comer.
Tenser e Caprice acabam atraindo atenção de dois burocratas do Registro Nacional de Órgãos, pois o Estado observa com preocupação o chamado transumanismo. São eles Wippet (Don McKellar, de Ensaio Sobre a Cegueira) e Timlin (Kristen Stewart, indicada ao Oscar por Spencer). Outros dois personagens importantes são Lang Dotrice (Scott Speedman, o Ben da série Felicity) e seu filho, o garoto Brecken, que nasceu com a capacidade de comer plástico.
Em torno de Lang e de Brecken, David Cronenberg constrói uma trama policialesca que se mostra desinteressante (ou até confusa). Mas não a ponto de nublar as virtudes de Crimes of the Future. Para além do talento do diretor em engendrar cenas de revirar estômagos — tanto dos personagens quanto dos espectadores —, o filme estimula uma série de reflexões sobre os humanos como ainda os conhecemos, a sociedade contemporânea e o mundo de amanhã. A substituição do "velho sexo" pelo prazer de perfurar ou ser perfurado cirurgicamente faz lembrar de como na vida estamos sempre procurando suprir algo que nos falta — no caso, a dor —, sempre buscando um equilíbrio emocional. O superpoder do menino Brecken assusta porque, no fundo, é capaz de ser encarado como uma "ideia brilhante", a um só tempo econômica e ecológica: imaginem se o sistema digestivo pudesse "evoluir" a ponto de nos alimentarmos de plástico, produtos químicos e até lixo tóxico. Já as lacerações faciais, que são vistas como tendência de moda, refletem como somos reféns do desejo de aceitação social e sobre como podem se tornar patológicos o culto à beleza e as intervenções corporais, ambos diariamente turbinados por celebridades e influenciadores no Instagram.