Dias atrás, a turma de redes sociais de GaúchaZH me convidou para, nos vídeos que gravo para o Instagram, falar sobre os grandes vilões do cinema. Para mim, são aqueles que conseguem escapar ou, no mínimo, atingir seu objetivo – citei como exemplo o de Oldboy (2003), em que o prato frio da vingança é cozinhado em fogo muito lento.
Há também quem engana não só os demais personagens, mas o próprio público sobre suas reais intenções – mencionar um título dessa vertente, que foi popular nos anos 1990, seria estragar a experiência do espectador incauto.
Outro tipo vilanesco de peso é o que nos seduz, a ponto de quase torcermos por ele, não importa o grau de sua malvadeza. São personagens que oferecem uma espécie de prazer culpado: sabemos que os filmes não vão nutrir o intelecto ou a alma, mas existe alguma coisa neles que hipnotiza o olhar, que desarma a moral, que, ora, diverte pra caramba - ainda que de um jeito sinistro e sangrento.
No fim de passada, deixei-me cativar por um desses caras. Procurando um suspense na Netflix, esbarrei em O Hóspede (The Guest), um filme independente americano de 2014 cujo cartaz nem prometia muita coisa: um retrato em close do ator inglês Dan Stevens (o Matthew Crawley de Downton Abbey, o par de Emma Watson no remake de A Bela e a Fera e o protagonista do seriado Legion), iluminado como se fosse um astro da música pop, e não o estranho que diz ser amigo de um soldado morto em combate referido na sinopse.
Mas cliquei e, tal qual a família do militar Caleb, que perdeu a vida no Iraque, acolhe David, também fui fisgado pelo canto da sereia – como se o personagem interpretado por Stevens fosse mesmo um astro da música pop.
Não demora para que a gente perceba que há uma máscara sorridente escondendo o verdadeiro David. Mas pai, mãe e os irmãos de Caleb estão inebriados – Luke (Brendan Meyer, o Jesse da série The OA), o caçula, finalmente tem alguém para o proteger do bullying diário na escola; Anna (Maika Monroe), finalmente tem um corpo sarado para desviar sua atenção do namorado que vende maconha.
Daí em diante, melhor deixar que você descubra os desdobramentos. Sem escorregar para o spoiler, posso dizer que O Hóspede abraça sem pudores sua condição de filme B. O diretor Adam Wingard – que depois assinaria uma retomada de A Bruxa de Blair, a versão americana do mangá Death Note e Godzilla vs Kong, previsto para estrear em novembro – ecoa influências e uma estética dos anos 1980, em especial de A Morte Pede Carona (1986) e da obra de John Carpenter. Para além dos créditos de abertura que usam a tipografia característica do cineasta de Fuga de Nova York e Christine, o Carro Assassino, para além da trilha sonora com sintetizadores tensos, fãs identificaram pontos em comum entre David e Michael Myers, o psicopata criado por Carpenter em Halloween (1978) – há inclusive cenas-tributo, como aquela em meio a lençóis pendurados nos varais.
Portanto, O Hóspede também é um filme sem vergonha de jorrar sangue e de retratar o mal como algo quase sobrenatural e imparável, tipo Michael Myers, tipo Christine, tipo as crianças platinadas de A Cidade dos Amaldiçoados, tipo a Coisa de O Enigma do Outro Mundo e tipo A Bruma Assassina. David parece ter sido urdido na mesma carpintaria: cínico e desprovido de compaixão, reforça o terror que significa a perda da individualidade; reafirma que estamos sempre à mercê de um forasteiro – um alienígena, um nevoeiro, um soldado – capaz de nos contaminar e perverter (e às vezes até abrimos a porta para ele); e nos relembra que pecados do Estado ou da sociedade cometidos no passado (seja remoto, seja recente) podem voltar à tona de forma arrasadora.