Um mil, quatrocentos e noventa e três. Esse foi o número de passadas que dei na corrida desta segunda-feira. São passadas duplas, ou seja, conto só a da perna esquerda, por exemplo. Foi a maneira que encontrei para, a um só tempo, driblar o tédio e conseguir ter uma noção da distância que venho percorrendo na garagem do edifício onde moro.
Correr é uma terapia. Um momento em que posso ficar comigo mesmo. Sozinho, organizo meus pensamentos e compromissos, reflito sobre o que fiz ou o que quero fazer, exercito também a memória, puxando alguma canção dos anos 1980 para me acompanhar – na minha própria voz: para espanto (ou vergonha) da minha esposa, já disse a ela que, quando estou precisando de um empurrão, canto, alto, New Order, Legião Urbana, George Michael, Picassos Falsos ou Smiths. Envergonhada mesmo a Bia ficou quando soube que, em uma bela manhã de sábado, tive de pedir ao zelador de um prédio na Eça de Queiroz para usar o banheiro dele. Vou poupar vocês dos detalhes, mas #gratidãoeterna.
Correr também significa pertencimento – o meu em relação à cidade, o da cidade em relação a mim. Adoro me deixar guiar pelas ruas e calçadas de Porto Alegre, criando novos itinerários ou esticando os já conhecidos. Adoro me sentir meio que dono dela, quando saio para correr com o sol ainda por nascer e posso ouvir o silêncio que ela é capaz de fazer.
Oitocentos e setenta e nove horas e alguns minutos. Esse é o tempo que me separa da última terapia pelas quadras do bairro e além. Quando entrei em teletrabalho, no final de março, me deixei vencer pela preguiça. Só retomei no dia 18, mas na garagem do prédio, que pelo menos é aberta e dá até um banho de sol. Foi fundamental para a saúde física (desconfiava que não fosse caber nas calças quando voltar a vesti-las) e para a mental (tenho me achado mais leve, ainda sem trocadilho, infelizmente).
Tomei essa decisão, a de correr sem sair de casa, não necessariamente por medo de contágio, mas por entender que seria um gesto solidário para com as pessoas que, por causa do coronavírus, estão privadas de seus prazeres e de suas rotinas. Não critico quem segue correndo nas ruas: cada um tem suas razões, cada um sabe o quanto aquele momento é vital para sua sanidade, o quanto correr pode representar tanto uma fuga (dos problemas) quanto uma perseguição (dos objetivos). Mas, se eu posso adaptar uma "pista", achei por bem fazer assim.
Portanto, caros vizinhos, não se assustem se um dia desses vocês ouvirem lá de baixo alguém entoando, talvez ofegantemente, os versos finais de Se Fiquei Esperando meu Amor Passar, tão apropriados para os dias que vivemos: "Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo / tende piedade de nós / Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo / tende piedade de nós / Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo / dai-nos a paaaaaaaaz!".