It – Capítulo Dois grita o tempo todo seu desejo de se tornar um épico. A grandiloquência pode ser percebida antes mesmo de começar a sessão de cinema: com duas horas e 49 minutos, provavelmente é o mais longo filme de terror, com duração semelhante à de títulos como Vingadores: Ultimato (três horas e dois minutos) e Avatar (duas horas e 42 minutos). Iniciada a projeção, somos brindados com outro sinal dessa pretensão artística – o narrador de voz grave que sumariza temas abordados na história, como os mecanismos da memória, os traumas do passado, a frágil e intrincada construção de nossas identidades, uma obra feita de enganos, erros e esquecimentos. Tudo é superlativo em relação a It – A Coisa (2017), que tinha meia hora a menos e que, com US$ 700 milhões arrecadados ao redor do mundo, virou o campeão de bilheteria do gênero. Para tentar roubar o recorde da própria franquia, o palhaço Pennywise (Bill Skarsgård) se transforma em monstros maiores, os banhos de sangue são mais frequentes e demorados, o susto fácil é empregado com menos parcimônia, a música passa a ser onipresente e intrusiva – se antes havia silêncios que geravam aflição e permitiam reflexão, agora a trilha sonora impõe o que o espectador deve sentir em cada e toda cena. Nem parece que os dois filmes que adaptam as 1.138 páginas do romance homônimo lançado em 1986 pelo escritor americano Stephen King foram dirigidos pela mesma pessoa: Andy Muschietti, o argentino realizador do angustiante Mama (2013) e um protegido do cineasta e produtor Guillermo del Toro. Na comparação, é como se It – A Coisa tivesse o dedo de Ingmar Bergman, o sueco que foi mestre na investigação psicológica de seus personagens, e Capítulo Dois, a mão pesada de Michael Bay, um entusiasta da ação mais descerebrada e repleta de computação gráfica.
Enfim: a primeira impressão foi negativa. Mas depois, olhando por debaixo das partes barulhentas e grotescas, é possível encontrar um elenco de dramas, personagens e temas capazes de estabelecer conexões consistentes com a audiência, que explicam o sucesso de It – A Coisa nas bilheterias e prenunciam um mar de dinheiro para Capítulo Dois, com rodada de pré-estreia nesta quarta-feira (4) e em cartaz a partir de quinta nos cinemas do Brasil. Apenas no Rio Grande do Sul, 65 salas exibem o filme.
Alternando presente e passado, Capítulo 2 relembra os acontecimentos de It – A Coisa, para situar o público. O cenário é a fictícia cidadezinha de Derry, no Maine, Estados Unidos, e o ano, 1989. Os personagens formam um elenco de arquétipos marginalizados e vítimas de bullying (não à toa, batizam a si próprios de Losers' Club, o Clube dos Otários): Bill, o menino gago; Mike, o órfão negro; Bev, a garota abusada pelo pai; Stanley, o judeu; Eddie, o doente (ou assim sua mãe o faz acreditar); Ben, o gordinho; Richie, que esconde sob a fachada do humor agressivo suas inseguranças. Todos vivem em um mundo praticamente sem adultos. Os raros que aparecem representam ameaças. Ou seja, estão por conta própria. Quando o irmão caçula de Bill, Georgie, é raptado por Pennywise, eles precisam se unir para enfrentar o sinistro palhaço – que toma formas diferentes e emprega discursos distintos de acordo com os medos de cada um. A turma, ao fim, consegue derrotar a criatura e firma um pacto: se Pennywise reaparecer, eles também devem se reunir.
Pois bem.
Vinte e sete anos se passaram, e Pennywise está de volta, pois o contexto é propício para a fabricação do medo que serve de alimento para o palhaço de voz assustadoramente oscilante (Skarsgård vai do agudo ao grave, do suave ao ameaçador na mesma frase). A violenta sequência de abertura mostra um ataque homofóbico em um parque de diversões – cena que já existia no livro de King, inspirado em um caso real de 1984, no mesmo Estado do Maine, e que continua tristemente atual. Mike (interpretado na vida adulta por Isaiah Mustafa), o único dos Otários a permanecer em Derry, onde trabalha como um bibliotecário – é o guardião da memória –, entende que é hora de convocar os velhos e agora distantes amigos.
É bem interessante ver como eles cresceram, como lidaram com seus traumas, como aquele setembro de 1989 influenciou suas trajetórias. Todos são aparentemente bem-sucedidos no campo profissional, mas pagam um alto preço emocional. Bev (Jessica Chastain), por exemplo, tem um marido abusivo e agressivo – podemos dizer que casou com seu pai, assim como Eddie (James Ransone) casou com sua mãe: sua esposa, obesa e superprotetora, é interpretada pela mesma atriz que desempenha o papel materno, Moly Atkinson. Richie (Bill Hader) tornou-se comediante – fez do seu mecanismo de defesa um ofício remunerado –, e Bill (James McAvoy) virou um escritor de horror best-seller incapaz de escrever finais felizes, impossíveis diante da culpa que carrega pelo desaparecimento de Georgie.
Cada um reage de uma maneira ao chamado de Mike. Para Bev, é uma rota de fuga. Para Ben (Jay Ryan), a chance de reencontrar Bev. Eddie e Richie, a dupla responsável pelo alívio cômico no filme, ficam nervosos: o primeiro, hoje um especialista em gestão de riscos, bate o carro, e o segundo vomita antes de um show e esquece suas piadas. Para Stanley (Andy Bean), o telefonema é ainda mais abalador. O quanto somos comprometidos com os amigos e com os juramentos que fazemos?
Parece que estou contando demais da trama, mas que nada. Como o filme tem quase três horas, muita água ainda vai rolar. Água, aliás, é uma palavra-chave. Já mergulharemos nela.
Em meio à pirotecnia e à excessiva duração, em meio a aranhas gigantes de CGI e estátuas que ganham vida, em meio a psicopatas fugidos do hospício que firmam parceria com zumbis, em meio a portais para outras dimensões e a lendas do misticismo indígena, em meio a jorros de sangue e banhos de gosma escura, em meio a aparições do próprio Stephen King e de um personagem icônico do escritor (dois acenos aos fãs, outra característica importada dos épicos de super-herói), em meio a tudo isso há elementos que tornam It – Capítulo Dois uma obra, a um só tempo, plenamente contemporânea e perene.
Pennywise trabalha como alguns líderes políticos da atualidade (o próprio Andy Muschietti o comparou a Donald Trump, presidente dos EUA). Faz intrigas e instila o revanchismo. Usa a tática de dividir para conquistar. Individualmente, os Otários ficam vulneráveis ao confrontar seus fantasmas. Estão mais propensos a sentirem medo. Com medo, acreditamos em monstros, em mentiras, em fake news – a promessa de flutuar para longe dos problemas, feita perversamente pelo palhaço, mostra-se mais tentadora. O antídoto é a união. É o compartilhamento de experiências e de forças. É colocar diferenças de lado em nome de um bem comum. Bill, Bev e companhia precisam agir como um grupo - uma sociedade.
E a água, Ticiano?, você que chegou até aqui pode estar se perguntando. Bastante frequente ao longo de todo o filme, desde o rio à beira do qual Pennywise ressurge, a água funciona como uma potente metáfora visual da memória. Ela é fluida, assim como a memória não é estanque. Ela pode ser turva, nos impedindo de ver com clareza o mal ou o bem que nos fizeram quando éramos crianças e adolescentes. Ela pode vir em ondas, nos revigorando, ou estar nos subterrâneos, quase inacessíveis. Ela pode trazer à tona "os sussurros que queremos silenciar e os segredos que queremos esconder", como cita Mike. Ela pode nos afogar, como um trauma do qual nunca nos libertamos, ou pode nos purificar, como um momento em que passado e presente se fundem, na evocação de doces recordações e na produção de novas lembranças positivas, aqueles momentos em que nos olhamos no espelho e vemos quem fomos e quem somos, uma imagem que nunca reflete apenas uma pessoa, mas todas aquelas que estiveram e estão lá para nos estender a mão.