Em 16 de fevereiro de 1957, Ingmar Bergman apresentou na Suécia O Sétimo Selo. Não tinha nem o esboço da outra obra-prima que filmaria e estrearia naquele ano, em 26 de dezembro, Morangos Silvestres. Entre esses dois marcos da história do cinema, encenou grandes espetáculos teatrais, um deles a ainda hoje referencial montagem de Peer Gynt, de Ibsen. Artista visionário que foi, ainda criou projetos de dramaturgia para a televisão, então uma recente novidade em seu país.
Para a cineasta sueca Jane Magnusson, 1957 foi o ano definidor da vida e da trajetória profissional de Bergman. E sobre essa linha do tempo, a diretora conduz o documentário Bergman – 100 Anos, produzido para celebrar o centenário de nascimento (14 de julho) do autor de clássicos como Persona, Gritos e Sussurros e Fanny & Alexander.
Em cartaz a partir desta quinta-feira (19) no Brasil, o documentário não é um tributo chapa-branca. Com acesso a um farto material de arquivo, Jane destaca alguns assuntos espinhosos, como a simpatia de Bergman ao nazismo (desembarcou por volta de 1946, quando os horrores do Holocausto judeu na II Guerra já eram públicos), a negligência aos filhos e a obsessão perfeccionista no set: foi capaz de arquitetar um falso diagnóstico médico para fazer um ator entrar em depressão e compor melhor um personagem. Mostra ainda uma entrevista com o irmão mais velho de Bergman, de quem o diretor teria se apropriado de traumas tratados como seus, e o temperamento irascível que ao final da vida somou-se a a sua fobias diversas.
Esses registros, cabe ressaltar, são devidamente contextualizados nos depoimentos de críticos, colegas, ex-parceiros de Bergman na vida e no trabalho ou em ambos, caso de Liv Ullmann, sua musa em filmes como Persona e Gritos e Sussurros e mãe de uma de suas filhas.
Jane Magnusson, 50 anos, como todos que trabalham com arte na Suécia, cresceu à sombra do gigante e o conhece com intimidade. Já teve o cineasta como tema de outro documentário, Trespassing Bergman (2013), codirigido com Hynek Pallas, em que renomados diretores falam da importância do mestre em suas vidas e carreiras. Nesse novo filme, a realizadora retrocede e avança no tempo a partir de 1957 para mostrar como Bergman e sua obra amalgamaram-se de tal forma que, defende ela, podemos conhecê-lo mais profundamente por seus filmes do que por sua referencial autobiografia, Lanterna Mágica.
Bergman começou 1957 à beira de um colapso físico e emocional, mostra Jane. Aos 38 anos, obcecado pelo trabalho, sem vida social, sem convivência com os seis filhos que tinha com três mulheres – teria mais três com outras três companheiras – e sofrendo com severos problemas estomacais, o sueco já era um diretor conhecido por filmes como Monika e o Desejo (1953), que impactou a futura geração da nouvelle vague francesa.
O temor à morte e a dúvida sobre a existência de Deus, em O Sétimo Selo, e o balanço melancólico de uma jornada de vida que exigiu sacrifícios de afetos e penosas escolhas, em Morangos Silvestres, mais de que um mudança de rumo em sua cinematografia redimensionaram a figura de Bergman no cenário mundial e consolidaram os marcos temáticos sobre os quais ergueria filmes memoráveis. De traumas de infância relacionados à severa criação do pai religioso aos conturbados relacionamentos amorosos, nos quais emendava mulheres, amantes e novos flertes sem fidelidade a nenhum modelo de arranjo, tudo lhe foi matéria-prima de criação.
Predomina, com justiça, nesse belo tributo, a elegia ao diretor para quem fazer cinema era confrontar e ir além da realidade, era mergulhar na catarse, era lançar perguntas sem respostas. Bergman se expressava com seus filmes. Projetava-se no séquito de espetaculares atores que arrastou consigo pela vida. O close-up, para ele, revelava um universo de sentimentos e informações. E ninguém filmou rostos como ele.
Mais que renovar a fé de convertidos, esse imperdível documentário tem tudo para arrebanhar novos devotos à paixão por Bergman.