Em cartaz a partir desta quinta-feira, inaugurando o projeto Clássica, que apresenta obras-primas em cópias restauradas nos cinemas, O Sétimo Selo (1957) é um deleite para os cinéfilos em sua construção visual e nas reflexões que proporciona. Leia, a seguir, três textos curtos dos três críticos de cinema de ZH sobre o filme do mestre sueco Ingmar Bergman.
Leia mais: 'O Sétimo Selo' inaugura projeto de clássicos no cinema
E ainda: outras críticas e reportagens de cinema em Zero Hora
O apelo do diabo
Por Daniel Feix | daniel.feix@zerohora.com.br
"Deus está acima de nós, bem longe. O diabo, aqui, em toda a parte", diz em sua caminhada o protagonista de O Sétimo Selo. A jornada do cavaleiro medieval, que procura um sentido para a vida na fé mas só encontra a miséria humana em um mundo devastado pela intolerância religiosa (o filme se passa à época das Cruzadas e da Inquisição), sintetiza a busca do próprio Bergman. Entre os anos 1940 e 80, o mestre sueco dirigiu mais de 40 filmes, a todo instante se perguntando onde e quando encontraria Deus. Foi a partir da falta de respostas que moldou seus trabalhos mais memoráveis.
Curioso notar que O Sétimo Selo foi lançado no mesmo ano de Morangos Silvestres (1957), outra obra-prima sobre a proximidade da morte. As alegorias (a vida num jogo de xadrez) e as imagens impactantes de O Sétimo Selo (a Morte sorrateira na igreja e na floresta), no entanto, talvez jamais tenham sido superadas. Convencionou-se dizer que Bergman foi o cineasta da alma. Mais do que isso, foi um dos artistas, em qualquer linguagem, que com mais profundidade conseguiu expor suas angústias existenciais. Soterrou o senso comum que costuma apontar o cinema como uma arte mais coletiva e menos pessoal. Em O Sétimo Selo, o artista está nu.
O silêncio de Deus
Por Marcelo Perrone | marcelo.perrone@zerohora.com.br
Em sua autobiografia Lanterna Mágica, Ingmar Bergman lembra, modesto, de O Sétimo Selo como um filme desigual pelo qual tinha grande apreço, feito sob condições primitivas mas com grande vitalidade e prazer. O diretor entrou no set assombrado por sua fixação infantil no medo morte e encarou frontalmente este temor, como faz o cavaleiro vivido por Max von Sydow.
Isso talvez explique a presença destacada da Morte na trama, em um encadeamento de sequências memoráveis: a prolongada partida de xadrez, o encontro no confessionário, o antológico cortejo macabro. O poder icônico desse duelo ilustra cenas das mais memoráveis do cinema - e também das mais parodiadas. Woody Allen, que tem O Sétimo Selo como seu Bergman favorito, presta-lhe tributo em A Última Noite de Boris Gruschenko (1975).
Bergman buscou no embate entre trevas e luz, razão e fé, não apenas respostas para as suas aflições existenciais. Ressaltou o poder de transcendência da arte, a esperança que sobrevive no momento da dança derradeira. Celebrar a vida, destacou, traz conforto para compreender a morte. E, como notou o crítico Roger Ebert, quando o cinema mostrava-se interessado na conversa do homem, Bergman mostrou-se único ao retumbar o silêncio de Deus.
A dança da morte
Por Roger Lerina | roger.lerina@zerohora.com.br
Filho de um austero pastor protestante, Ingmar Bergman diz que se inspirou em um afresco medieval de uma igreja sueca para escrever a peça Uma Pintura em Madeira - que daria origem a O Sétimo Selo. As referências iconográficas do 17º filme do mestre ecoam ainda as pinturas de Hieronymus Bosch e as gravuras de Albrecht Dürer.
Já a antológica cena da "dança da morte" no final (reproduzida acima) foi rodada em uma tomada única, registrada em preto e branco expressionista pelo diretor de fotografia Gunnar Fischer. A imagem remete às danças macabras das alegorias pictóricas medievais e ao quadro A Parábola dos Cegos (1568), do pintor flamengo Pieter Bruegel, o Velho. Artista de sólida formação humanista, Bergman mantinha, no entanto, uma complexa relação com a religião.
Na introdução do roteiro de O Sétimo Selo, o cineasta pontifica: "A arte perdeu seu impulso criador básico no momento em que se separou do culto". E, depois de lembrar a lenda da Catedral de Chartres, destruída pelo fogo e reedificada por milhares de artesãos anônimos, rejeita o individualismo moderno e abraça o idealismo em um credo: "Se me perguntassem o que gostaria que fosse o objetivo geral de meus filmes, responderia que quero ser um dos artistas da catedral na grande planície".