A trajetória da Estrada do Prosecco, na Itália, guardados o tempo e a proporção, pode ser comparada à do Vale dos Vinhedos, na serra gaúcha. Por aqui, a criação da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos, de 1995, impulsionou a produção do vinho e o turismo na região, reconhecida como Indicação Geográfica em 2002 e como Denominação de Origem em 2012. Por lá, a Strada del Prosecco e Vini dei Colli Conegliano Valdobbiadene, de 2003, é herdeira da primeira "estrada vinícola" da Itália, de 1966. De novo a Itália?, você pode se perguntar. É que achei que esta semana que antecipa o novo ano seria perfeita para falar de bebidas que se prestam a brindes nos dias de festas e de verão.
A Estrada do Prosecco fica na província de Treviso, no Vêneto, nordeste do país, e abrange um roteiro de 120 quilômetros de rodovias e trilhas que, não por acaso, começam na Escola Enológica de Valdobbiadene e vão até outro município, Conegliano, serpenteando entre vinhedos com mais de 300 anos de tradição e 3 mil pequenas propriedades. Ali se pratica a chamada "viticultura heroica", já que, por conta do terreno acidentado, o trabalho anual é de 600 horas, enquanto nas planícies gasta-se 150 horas/ano. Os cenários deslumbrantes valeram o título nacional de Paisagem Rural Histórica, em 2016, e de Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 2019 — não só pela paisagem, mas por a "mão humana gerir o espaço natural de forma harmônica".
Ainda que baseada na tradição e nos pequenos produtores, há um investimento pesado em formação e inovação e o consórcio que agrega as cidades trabalha em parceria com universidades e centros de pesquisa, para preservar a biodiversidade dos vinhedos, a flora espontânea, os anfíbios e micro-organismos — há 450 espécies de plantas catalogadas na região onde vivem pequenos e grandes mamíferos, como cervos e veados, lebres e lobos.
Parece mesmo, percorrendo-a, que tudo convive em equilíbrio. No caminho, entre as colinas que se erguem dos 50 aos 500 metros de altitude, recobertas de parreirais, há vilas, parques, mosteiros, grutas, castelos, catedrais, moinhos... A área da produção engloba 15 cidades, mas as atrações naturais, culturais e históricas se estendem por uma zona um pouco mais abrangente, com outras 15 localidades.
Visitei a região no final do último verão por lá, quando a vindima acabava. Você pode, simplesmente, andar pelas estradas (de carro ou bicicleta) e apreciar a paisagem, o que não é pouco, ou fazer pequenas paradas e agendar visitas a vinícolas. Vou recomendar aqui as quatro pausas que fiz.
O que é o prosecco
Prosecco é o vinho espumante obtido da segunda fermentação do vinho base elaborado a partir da uva glera (denominada prosecco até 2009). A mudança de nome — cercada de polêmica até hoje, já que esse tipo de uva é cultivado em diversas regiões vitivinícolas do mundo — ocorreu porque a legislação não permitia um DOC (Denominação de Origem Controlada) em que uva e bebida tivessem o mesmo nome. Seu método de produção é o charmat (a segunda fermentação ocorre em tanques e não na garrafa). Popular no mundo inteiro, tem grande produção e hoje é o espumante mais consumido no mundo, chegando a uma produção de mais de 800 milhões de garrafas em 2022. Mais em coneglianovaldobbiadene.it
DOIS PARADOUROS
Osteria Alla Terazza — Mais do que o primeiro brinde com prosecco e uma tábua de frios e pães que faria o papel de almoço, vale aqui muito a "terazza" do título. Há uma área aberta ao nível da estrada e o terraço propriamente dito é alcançado por uma escada em caracol de onde se podem enxergar os vinhedos quase a perder de vista. Em dias claros, me dizem, se pode vislumbrar, beeem ao longe, algumas das torres de Veneza. Vale a comida, o prosecco e a vista. Mais em @osteriaallaterrazza16
Osteria Senz'Oste — Também aqui o título explica: não há ninguém para servi-lo. É chegar e estacionar entre os parreirais e cuidar da própria bebida/comida e da visita. De início, a família De Stefani só usava a casa aos finais de semana e, ao resolver abri-la a visitantes, deixou uma garrafa de vinho, copos e um bilhete sobre uma mesa: "Valor da garrafa 10 euros, sirvam-se por conta e boa degustação". Nascia a proposta. No interior da casa de pedra do século 19 ou em espaços refrigerados no meio das videiras, você escolhe os queijos, salames e vinhos, etiquetados com os respectivos preços. As mesas espalham-se por pontos estratégicos onde a vista é protagonista. A conta, na saída, é paga num caixa automático. Se não quiser consumir nada e só vislumbrar a paisagem, ninguém o impedirá. Mais em osteriasenzoste.it
UM RESTAURANTE
Da Gigetto — Não se acanhe pela aparente solenidade deste restaurante herdado da avó por Luigi Bortolini, o Gigetto. O bom gosto e a elegância, as toalhas de linho, os talheres e as porcelanas não ofuscarão o principal: a excelente comida e o gentilíssimo atendimento, capitaneado pela esposa de Gigetto, Elda. A decoração inclui uma coleção de panelas de cobre que pendem do teto e os instrumentos musicais de uma antiga banda. Também não se deixe impressionar só por esse espaço. Peça o aperitivo na cantina, no subsolo, considerada uma das mais bonitas da Itália, onde há 1,6 mil rótulos de vinhos nacionais, com destaque para os regionais, e importados. Mais em ristorantedagigetto.it
UMA VINÍCOLA
Vinhos Sara Meneguz — Ao longo da Estrada do Prosecco não faltarão opções, mas eu destaco a vinícola que conheci e é gerida por uma mulher, a primeira da família Meneguz desde 1750, quando começa a história desta pequena empresa localizada em Tarzo. Os seis hectares de vinhedos ficam no coração da região produtora e um dos destaques é a "dimensão artesanal" do trabalho, com aplicação de técnicas sustentáveis e colheita manual. Perguntei a Sara — que se orgulha de receber de vez em quando a visita de descendentes dos Meneguz no Brasil — o que significa o prosecco para ela e como é ser uma viticultora pioneira num mundo até pouco tempo atrás masculino. A seguir, seu depoimento:
"O prosecco é o vinho da minha família, representa a minha história, as minhas raízes. Cresci vendo o meu pai fazendo o vinho, de modo particular produzindo o prosecco, vendo-o cultivar as videiras. Desde criança eu participava e, durante a vindima, lembro de levar o almoço para quem ajudava na colheita e de vê-los todos sentados em meio aos parreirais, comendo juntos. Sou a primeira mulher, em 300 anos de história da minha família, a estar à frente da produção e da venda. Quando eu percebi que esse era o meu destino e eu queria mesmo segui-lo, senti o peso dessa responsabilidade. Era um duplo peso: de continuar com uma importante tradição familiar e de estar à altura dela, e de saber que, sendo a primeira mulher em uma longa tradição masculina, teria todos os olhares voltados para mim. E foi assim. Não me deram nenhum desconto, ao contrário. No início foi muito difícil. Tínhamos clientes históricos, que me conheciam desde criança e me viam aqui com meu pai, mas eu percebia neles um certo espanto. Suportei e fui adiante com determinação, pensando que devia dar a eles o tempo de que precisavam para perceber que eu estava fazendo tudo aquilo por amor, por paixão e por um pouco de talento que talvez eu tenha herdado. Sei que as palavras não convencem tanto quanto os fatos e dei tempo ao tempo, pois era certo de que com os fatos eu provaria merecer estar no lugar do meu pai." Mais em vinimeneguzsara.it