Muitas coisas ficaram em suspenso durante a pandemia, e há pouco lembrei que deixei para trás parte do relato de uma das viagens mais legais que já fiz. É que eu desembarquei de volta de um roteiro pela Patagônia argentina e chilena dias antes de o pandemônio se instalar no mundo e, obviamente, tudo aquilo que havia vivido se tornou irrelevante.
Não era minha primeira vez por lá. Anos atrás, havia ido a cidades do sul do Chile — Puerto Montt, Punta Arenas, entre outras — e conhecido o Lago Puyehue, o vulcão Osorno e a pequena e charmosa ilha de Chiloé. Em outra oportunidade, desci para a mesma região e fiz a chamada "travessia dos lagos", começando pelo lado chileno e terminando em Bariloche, no lado argentino — uma viagem de 12 horas feita em sete etapas (quatro terrestres e três lacustres), subindo e descendo de ônibus e embarcações. Houve também aquela em que fui a Ushuaia, na Terra do Fogo, conhecida como o "fim do mundo", no extremo sul da Argentina, passando depois por El Calafate e suas principais atrações, as geleiras, com destaque para o indescritível Perito Moreno.
Não me conformava, porém, em ter deixado para trás Torres del Paine, no Chile. Foi esse o destino desta última viagem pré-pandêmica, da qual só falei sobre a parte chilena, quando as fronteiras daquele país foram reabertas. Pode ter caído no esquecimento na coluna, mas não sairá de minha memória nem das milhares de imagens que resultaram daqueles dias.
O roteiro que eu fiz
Saí de Porto Alegre, com a Aerolíneas Argentinas (que voltou a fazer essa rota só em abril deste ano), até Buenos Aires, apenas para a conexão. O destino final seria o aeroporto de El Calafate, na província de Santa Cruz (voo de 3h30min a partir da capital portenha). A paisagem do alto já dá uma ideia do que se encontra por ali, com o azul dos lagos invadindo as janelas do avião. Mesmo que você já tenha ido, como era o meu caso, é sempre surpreendente.
Como na vez anterior tinha feito o caminho terrestre até o Perito Moreno, a mais famosa das geleiras, e já que deveria voltar para ali, por gosto e por estar com uma pessoa que nunca tinha ido, decidi pelo cruzeiro em um catamarã. Ele parte de um porto privado do Lago Argentino, a 40 quilômetros do centro de El Calafate e navega o dia inteiro passando pelas geleiras Seco, Heim, Spegazzini e Upsala, tendo o grand finale na parte norte do Perito Moreno. O catamarã comporta até 200 pessoas e o passeio oferece almoço a bordo — box com refeição básica, mas honesta, ou almoço "gourmet". Há um único desembarque durante o dia, nesse roteiro, em Puesto de Las Vacas, onde se faz uma pequena caminhada.
Tínhamos o dia seguinte livre, antes de partir rumo ao destino principal da viagem, do outro lado da fronteira, e ficamos pela zona urbana de El Calafate, que tem pouco mais de 6 mil habitantes e é bonitinha, com uma boa oferta de cafés e restaurantes. Visitamos o Centro de Interpretação Histórica, que mostra as origens da região, incluindo fósseis e dinossauros e tem uma área dedicada aos povos originários, exterminados com a ocupação por exploradores. Passeamos a pé e encerramos o dia na Caminhada dos Artesãos, com produtos regionais, artigos em couro, cerâmica, pedra, têxtil...
A segunda parte da viagem cruzaria a fronteira da Argentina rumo a Torres del Paine, no Chile, e eu deixei para decidir como chegar até lá quando já estava em El Calafate. Perdi um certo tempo com isso. A ideia de ir de ônibus regular foi abortada, pois seria demorado demais e ficaríamos longe do nosso destino, um hotel-spa na entrada do Parque Nacional, às margens do Rio Serrano. A opção acabou sendo contratar um passeio de dia inteiro que partia de El Calafate em um veículo esquisito, espécie de ônibus montado sobre um chassi de caminhão que faz um bate-volta e percorre estradas de chão.
Só a viagem, em si, seria uma aventura, com direito a problemas nos freios e tudo — procurei uma empresa conceituada para o transporte, mas o risco, nesses locais, sempre existe. No interior do veículo, ignorando a pandemia que estava por vir, éramos 40 pessoas de 22 nacionalidades. Fizemos o passeio oferecido e, conforme combinado, no final do dia, ao invés de retornar com os demais, nos deixaram num ponto onde um transfer nos levaria ao hotel reservado. Até aí já havíamos avistado Los Cuernos, a famosa formação rochosa do Parque Nacional Torres del Paine, visitado lagunas, ficado frente a frente com guanacos e nos embasbacado com o azul do Lago Pehoé.
Tinha programado navegar pelo Lago Grey no dia seguinte, mas os ventos impediram a saída do nosso barco. Aventura trocada por outra pequena aventura: subir até o Mirador Condor para ter novas vistas do parque, com ventos de mais de 70km/h. Dois dias foram poucos, é preciso voltar e fazer caminhadas, o grande programa de quem procura Torres del Paine — das escaladas já nem falo, pois eu, sinceramente, não pretendo fazê-las. Retornei a El Calafate, de onde partiria o voo de volta para Buenos Aires-Porto Alegre, com a convicção de que se esta não pode ser a minha última vez por aqui. Há sempre muito o que ver.