Há dias não publico nada na coluna criada para falar de lugares, de aventuras, das experiências que vivemos mundo afora. Não há o que dizer sobre isso agora, embora a natureza e todas as belezas que o homem criou continuem, ir e vir se tornou esse drama a que todos assistimos atônitos. Abandonei o espaço e me juntei à força-tarefa que na Redação procura focar na atualização das informações e em serviço para evitar que essa pandemia se torne mais grave ainda. Tudo, neste momento, é incerteza. Por isso, como tenho pregado a todos, #fiqueemcasa agora para que voltemos o mais breve possível a circular, não só pelo nosso bairro, cidade, Estado ou país, mas por esse mundo afora. De um jeito mais consciente, espero. Precisamos tirar lições disso.
Por pouco essa pandemia não me pegou fora das fronteiras também. Imagino o quanto seria terrível estar longe de casa nesse momento. Por isso não quis deixar de publicar o relato do Sérgio Stangler, escritor, médico, viajante, que já colaborou mais de uma vez com a coluna, enviado na sexta-feira (20). O drama vivido por ele, pego no contrapé enquanto percorria o deserto do Atacama, no Chile, é o de muitos nesses dias. Confira abaixo.
"Vivências temos tido bastante por essas bandas em tempos de pandemia. Como há muito tempo já entendi que viagens não devem ser visitas a pontos turísticos ou cumprimento de roteiros, essa vivência está, apesar de toda a preocupação, sendo deveras interessante. Saí com a intenção de levar minha suegra a um bom tempo da sua juventude e tudo ‘reviroltou’ desde a partida.
Não creio que ser humano algum no planeta tenha passado pelo que estamos atravessando agora: uma doença contagiosa invisível e planetária que está impondo uma mudança de comportamento jamais vista, na velocidade da luz. As notícias, contagem de números e decisões governamentais acontecem diariamente e ninguém sabe quais serão as recomendações/restrições de amanhã. Parece que o único consenso é o afastamento interpessoal, o isolamento social.
Viajei para o Chile antes que qualquer medida mais drástica houvesse sido tomada (ou sequer cogitada) na América Latina. Viagem de carro, levei três dias para chegar. Na véspera da minha partida houve Gre-Nal em Porto Alegre com 50 mil pessoas no estádio e mais um tanto nas cercanias. No dia seguinte à minha partida, meu filho gastou o tempo livre como milhares de outros porto-alegrenses passeando em shopping. Quando cheguei ao Chile, as aulas continuavam na sua rotina presencial.
Dois dias dentro do país e a Argentina fechou as fronteiras, o que nos impede de voltar para casa por agora. No dia seguinte, as aulas no Brasil foram suspensas e passaram a ser a distância, com recomendação expressa de que os estudantes não saíssem de casa. Campeonatos de todas as modalidades foram cancelados ou interrompidos sem data para o recomeço. Mais um dia e o Chile fechou suas fronteiras, impedindo a entrada de pessoas vindas do exterior.
A partir desse momento, ou seja, quatro ou cinco dias após a minha saída, o assunto era um só: o coronavírus. Um sortido material informativo passou a ser onipresente nas redes sociais e na televisão: desde números catastróficos futuros que fazem a festa dos alarmistas impedindo que se argumente em qualquer nível com eles, até impressionantes derretimentos reais de dinheiro nas bolsas de valores, passando por piadas intermináveis para todos os gostos.
Fato é que, entre a partida de Porto Alegre e a chegada ao deserto do Atacama, o mundo havia mudado. E nós nos encontramos no Chile tentando nos proteger e entender todas as mudanças que estão acontecendo com uma rapidez alucinante.
Passamos e nos isolar aqui também. Alugamos um apartamento e nos divertimos cozinhando — a única diferença é que a comida e o vinho são importados. Nossa única saída foi uma ida ao mercado, que estava todo abastecido e sem corre-corre algum das pessoas onde compramos comida para uns cinco dias. Como estávamos no deserto, em uma cidade pequena com zero casos de infecção pelo coronavírus, o receio de contágio não nos causava nada além de um vago receio mesmo. Nenhum pânico ou alarmismo.
Mas as medidas governamentais foram apertando e apertando. Desde ontem (dia 19), o Chile entrou em ‘estado de exceção’ através de um pronunciamento do presidente Piñera em rede nacional. Isso significa uma gama enorme de medidas vagas, mas que aumentam o poder de polícia do Estado sobre os direitos civis. Uma espécie de autorização prévia e irrestrita para o governo tomar a decisão que julgar necessária, mesmo que invada o direito individual, pelo bem comum. A primeira delas: shoppings, bares, restaurantes, cinemas e qualquer outra atividade comercial que promovesse aglomeração de pessoas deveriam fechar e ponto final.
Já não sabíamos o que viria pela frente. Precisávamos nos deslocar ainda cerca de 1,5 mil quilômetros ao sul até a casa dos familiares chilenos onde permaneceremos em quarentena até que a situação melhore. Teríamos algum tipo de problema se saíssemos dirigindo pelas autopistas do país? Minha sogra tem mais de 65 anos e é considerada grupo de risco e aqui no Chile existe uma obrigação para que permaneçam em casa, que não circulem pelas ruas. Ficar dentro do carro é o mesmo que ficar em casa ou é o mesmo que circular pelas ruas? Não sabíamos. Não sabemos ainda.
Bom, fizemos sanduíches para não termos que entrar em local algum e combinamos que pararíamos apenas em atrações naturais localizadas em pontos desérticos onde não houvesse pessoas, para que a viagem tivesse um mínimo de distração.
Sem que nenhum de nós precisasse combinar, tacitamente acordamos que o assunto coronavírus era demasiado pesado para que o relembrássemos o tempo todo. Passamos a falar de outras coisas, era melhor para o nosso estado emocional. Dirigimos cerca de 800 quilômetros sem nenhum problema com os carabineros ou qualquer restrição de circulação. Mantivemos o tanque de combustível cheio (todos os postos estavam funcionando) e os frentistas e cobradores de pedágio (sim, todos funcionando) foram o único contato interpessoal que tivemos ao longo de hoje.
Enquanto estávamos os três no carro, sem internet ou contato com familiares e amigos do Brasil, dirigindo por paisagens impactantes e lindas, conseguimos nos divertir e passar bem. Foi uma bela viagem. Minha sogra deslumbrada com a oportunidade única de rever com os próprios olhos o país onde nasceu e que tanto ama e passar por locais onde não havia voltado desde a sua juventude. O país de onde foi expulsa pela ditadura para se exilar no Brasil. Nunca se envolveu com política, me disse, mas seu marido, sim. Não cansava de repetir que o período que viveu no Atacama fora a melhor época da sua vida, lembrava das festas e tal. Acho que a juventude, seja ela qual tenha sido, é sempre a melhor época da vida das pessoas, não? Chegava a tomar café para se manter acordada pois não queria dormir e perder de ver o entorno. Esse momento fez o dia escorrer leve em meio a tanto caos.
Chegamos até a cidade onde a minha esposa nasceu e à qual ela nunca mais havia voltado. Estamos em Copiapó agora, foi onde decidimos dormir.
Saímos a procurar hotel e nesse contato interpessoal fugaz das recepções se pode perceber a incorporação imediata e automática de um novo hábito social: o distanciamento. Todas as pessoas estão se mantendo afastadas umas das outras. Permaneci sempre dois metros longe do balcão das recepções, o que tranquilizava as atendentes, percebia-se facilmente. Nada do ultrapassado hábito de apoiar-se, tamborilando com os dedos enquanto aguarda o preço do quarto. E como se perde a naturalidade ao adotar uma postura decorada, o trato todo está mais formal. Nada de informalidades, brincadeiras ou leveza. Falar de longe, só o essencial é a nova regra.
Primeira notícia que recebo aqui: hotéis estão impedidos de hospedar estrangeiros que chegaram ao Chile há menos de 14 dias. Decreto governamental. Estamos há sete dias aqui, ou seja, hotéis não nos acomodariam por essa noite. Eram cerca de 19h, estávamos cansados do dia de viagem e essa perspectiva nos assustou um pouco. Na própria recepção de um dos hotéis o funcionário me disse que a única maneira seria usar o Booking.com, o que de fato resolveu nossa situação em 10 minutos. Mas 10 minutos tensos, como não? Outro detalhes: esse hotel é uma grande rede daqui, padrão 4 estrelas e estava com tapumes pichados em toda a entrada para se proteger dos protestos sociais violentos que sacudiram o Chile nos últimos meses, dando um clima ainda mais desolador e, até, assustador à cena toda.
As ruas das cidades não estão vazias, táxis circulando normalmente. Mas não sei dizer o quanto do movimento em relação a um dia normal porque não tenho o parâmetro de comparação. Algumas lojas fechadas, mas alguns restaurantes abertos. O pessoal dos aplicativos de entrega de comida circulando para cima e para baixo. As ruas estão limpas, de forma que se compreende que os serviços essenciais se mantêm em atividade.
Uma outra grande mudança drástica é o desaparecimento súbito dos turistas. Quando chegamos em San Pedro de Atacama, há quatro ou cinco dias, tinha diminuído bastante o número de viajantes, mas havia muitos deles caminhando pelas ruas da cidade à noite, inclusive brasileiros. Hoje, ver alguém carregando mochilas ou malas pelas ruas é algo tão raro que causa espanto. Quando saíamos do apartamento de Calama, no centro do deserto do Atacama, vimos uma jovem com uma pesada mochila nas costas. Sabia que estavam chegando uns brasileiros para se hospedar no mesmo prédio naquele dia e perguntei se ela era brasileira. Alguém na mesma situação que a gente poderia nos dar informações úteis. Mas ela disse que era francesa e não sabia como resolveria a sua situação. Não havia voos e todas fronteiras da França estavam fechadas também. Me compadeci da sua situação. Nós pelo menos tínhamos o carro e uma casa familiar para nos dirigir. Desejei boa sorte.
Hoje no noticiário da TV uma reportagem com vários chilenos espalhados pelo mundo que não podem voltar para casa e não têm condições econômicas de se manterem onde estão. Alguns estavam em Punta Cana quando as fronteiras foram fechadas e os voos cancelados. Outros não puderam sair de seus destinos porque as fronteiras de algum país onde o avião faria escala havia sido fechada. Um grupo de cerca de 40 pessoas está sem conseguir sair do Equador. Nenhum deles com previsão de solução imediata para seus problemas. Dramas individuais para todos os lados nesses dias incríveis.
É impossível que, diante de tantas restrições à circulação de pessoas, não ocorra uma quebradeira generalizada no ramo do turismo e do transporte de passageiros. Ninguém sabe ainda quanto tempo vai durar essa quarentena global. E quem é que vai consumir qualquer produto ou serviço que não seja de urgência em tempos como esses? Impossível fazer previsões otimistas além do setor de alimentos e do que produz álcool gel.
Outras histórias que li por aqui sobre o coronavírus: uma argentina, casada, que vive na Espanha, voltou sozinha para Córdoba e fez um contato com um ex-namorado que vivia em uma minúscula cidade no interior da Argentina. Mesmo ela estando com sintomas do coronavírus, eles viveram tórridos momentos. Quando voltou para a sua pacata cidade, o rapaz fez um churrasco e se vangloriou para os cerca de 20 convidados. Todos ficaram incrédulos diante da sua irresponsabilidade, alguém denunciou à autoridades e o resultado foi que a cidade toda está em quarentena, ninguém pode entrar ou sair de lá.
Agora à noite chegou a notícia que na cidade de Torres, no Rio Grande do Sul, um rapaz fez algo parecido, frequentando festas e eventos após viagem à Irlanda e testou positivo para a Covid-19, causando revolta na cidade. Um dono de bar em Paris, que não parou de funcionar nem durante a Segunda Guerra Mundial, o fechou há três dias pelo coronavírus e disse a razão: os nazistas a gente podia enxergar quando vinham, o vírus, não. Parece que todos os 55 casos de Covid-19 do Uruguai estão relacionados a uma decoradora que chegou de Madrid com sintomas gripais e foi a uma festa de casamento da alta sociedade de Montevidéu no dia seguinte. Em Santiago do Chile, moradores de uma rua fecharam o acesso a não residentes e fazem vigilância com cones de sinalização e porretes em mãos, no melhor estilo Mad Max. Na Venezuela, num condomínio de baixa renda, descobriu-se que uma família estava contaminada e os bandidos donos do pedaço avisaram que ‘o vírus precisa morrer dentro desse apartamento’ numa clara ameaça de assassinato. Tempos intranquilos fazem aflorar o lado mais sinistro da natureza humana.
Na América Latina, uma semana se passou desde a apreensão vaga a respeito da nova doença se transformasse numa proibição de circulação das pessoas e um isolamento quase compulsório. Uma mudança drástica que ninguém pode saber até onde vai.
No momento, é preciso ficar em casa, onde quer que se esteja, e viver apenas o dia a dia para saber onde tudo isso vai parar. São tempos de incerteza, de cuidados e de uma necessária tranquilidade. É hora de começar a baixar aquela pilha de livro que a gente adia sempre porque nunca tem tempo livre. A pilha de livros é interminável, a quarentena, não. E torcer para o que contágio e suas consequências diminuam o mais rápido possível. A única notícia realmente boa é que na China a doença foi controlada, ao que parece.
#fiqueemcasa!