De um senador da República espera-se, em primeiro lugar, que seja fiel à verdade dos fatos históricos. O general da reserva Hamilton Mourão, que 2.593.294 pessoas elegeram para representar o Rio Grande do Sul no Senado, cometeu um post de 96 caracteres no X (antigo Twitter), onde tem 2,7 milhões de seguidores, afrontando a verdade do golpe militar de 1964. Sessenta anos depois, escreveu o general senador: “A história não se apaga e nem se reescreve, em 31 de março de 1964 a Nação se salvou a si mesma!”.
Impossível discordar da primeira parte do post: a história não se apaga e nem se reescreve”. Poderia ter dito que nestes 60 anos foram incontáveis as tentativas de reescrever a história de um golpe de Estado que ele chama de revolução. Até a data é objeto de questionamento: foi mesmo 31 de março ou o certo seria 1º de abril. Esse é apenas um detalhe perto do que vem na segunda parte da sentença: “em 31 de março de 1964 a Nação se salvou a si mesma”.
Salvou-se de que, senador Mourão? “Do comunismo”, dirão os que aceitaram todas as atrocidades ocorridas naqueles 21 anos sombrios em nome de salvar o Brasil de um risco que ele não corria de fato, mas tinha sido plantado nas mentes de boa parcela dos brasileiros — como pretexto para derrubar um presidente cuja posse os militares tentaram impedir em 1961. Jango, o presidente latifundiário, queria implementar uma série de reformas para as quais militares, políticos e a imprensa não estavam preparados.
Antes de chegar a 1964, que Mourão e seus companheiros de farda tratam como “salvação,” é preciso relembrar de 1961 e como se chegou à crise que resultou na tentativa de impedir a posse de Jango. Os brasileiros elegeram um lunático chamado Jânio Quadros para presidir a República depois de Juscelino Kubitschek, um político moderno, visionário e liberal nos costumes. Um presidente que tinha construído Brasília em tempo recorde e transformado o Brasil no paraíso das empreiteiras.
Jânio, conservador nos costumes e errático na economia, embarcou no discurso de varrer a corrupção e conquistou corações e mentes. Renunciou em agosto de 1961 dizendo-se perseguido por forças ocultas, que nunca identificou quais eram. Se o projeto era mesmo voltar nos braços do povo, deu errado. Mas o vice, que naquela época se elegia independentemente do titular, era intragável para os militares. Para piorar, estava em Pequim, na China comunista.
Se não fosse pelo cunhado Leonel Brizola, que do Palácio Piratini comandou a resistência em uma frente conhecida como Movimento da Legalidade, Jango não teria assumido. O golpe foi apenas adiado, mas continuou fermentando. E em março de 1964 um outro Mourão, o Olímpio (a história tem lá suas coincidências), entrou para a história como o líder daquilo a que os golpistas chamaram de revolução.
Dos excessos cometidos nesses 21 anos em nome do combate ao comunismo, o Mourão de 2024 (que em 1964 era um menino) não fala. Não porque os ignore, mas porque aprendeu na caserna a justificá-los. Da tortura, dos “suicídios” como de Vladimir Herzog, dos sequestros, dos desaparecimentos, da censura, do fechamento do Congresso, da proibição de eleições... nada.
Mourão está tentando reescrever a história. Mas, como ele mesmo disse, a história não se apaga e não se reescreve.