Cada palavra da sequência de tuítes do agora ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta foi calculada milimetricamente para servir como documento para a posteridade. Antes que as redes bolsonaristas pudessem disseminar a versão, Mandetta mesmo foi para o Twitter e publicou uma sequência de posts que, pela rapidez, já deveriam estar redigidos no bloco de notas:
“Acabo de ouvir do presidente Jair Bolsonaro o aviso da minha demissão do Ministério da Saúde. Quero agradecer a oportunidade que me foi dada, de ser gerente do nosso SUS, de pôr de pé o projeto de melhoria da saúde dos brasileiros e de planejar o enfrentamento da pandemia do coronavírus, o grande desafio que o nosso sistema de saúde está por enfrentar.
Agradeço a toda a equipe que esteve comigo no MS e desejo êxito ao meu sucessor no cargo de ministro da Saúde. Rogo a Deus e a Nossa Senhora Aparecida que que abençoem muito o nosso país”.
Mandetta começou a cair há um mês, quando o presidente Jair Bolsonaro desobedeceu a orientação do Ministério da Saúde e foi ao encontro de simpatizantes na manifestação de 15 de março. À época, Bolsonaro já estava cercado de infectados por todos os lados — do ministro Augusto Heleno ao secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, com quem viajou para os Estados Unidos.
De lá para cá, as relações desandaram. Quando mais espaço Mandetta ganhava na mídia, mais Bolsonaro fazia questão de afrontar a orientação das autoridades sanitárias. Além de subestimar a gravidade do coronavírus e tratar a covid-19 como uma "gripezinha" ou um "resfriadinho" que só deveria preocupar idosos e pessoas com outros problemas de saúde.
Enquanto Mandetta dava entrevistas diárias e detalhadas recomendando o distanciamento social, Bolsonaro falava a seus jornalistas preferidos pregando a volta à normalidade, para conter os prejuízos decorrentes da paralisação da economia.
A tensão foi crescendo até o ponto de ebulição, quando as pesquisas começaram a mostrar que Mandetta era bem mais popular do que o chefe. Outro teria pedido demissão diante das humilhações de Bolsonaro, mas Mandetta resolveu deixar o ônus para o presidente. Usou a frase “médico não abandona paciente” para dizer que só sairia do ministério da Saúde demitido ou morto.
A gota d’água foi a entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, no último domingo. Além do conteúdo, Mandetta provocou Bolsonaro pela forma: falou do Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, para a emissora que o presidente despreza com todas as suas forças.
Na entrevista de despedida, com o auditório do Ministério da Saúde lotado de funcionários que aplaudiram sua entrada triunfal, Mandetta envergava o colete do SUS que foi sua vestimenta oficial nas últimas semanas.
A expressão era de quem acabou de se livrar de um fardo. Começou citando os nomes de cada um dos integrantes da equipe e esbanjou o talento de comunicador que o fez conhecido dos brasileiros nos últimos dois meses. Aos funcionários de carreira, fez um apelo para que trabalhem ainda mais para o seu sucessor, o oncologista Nelson Teich.
Incontáveis vezes, Mandetta avisou que o pior ainda está por vir. Que abril e maio serão meses muito difíceis. O ministro foi demitido no momento em que o Brasil contabiliza 1.924 mortes e 30.425 casos, embora as autoridades não cansem de avisar que os números reais são maiores, porque há uma longa fila de testes à espera de resultados. O que ocorrer daqui para a frente já não lhe pertence.
A impressão preliminar é de que Bolsonaro criou um adversário forte para 2022.