Três episódios da semana reforçam a necessidade de uma reflexão profunda sobre a necessidade de proteção a uma das grandes conquistas da sociedade democrática: a liberdade de expressão. A censura, como um camaleão, muda de cor para enganar os incautos. Ora diz falar em defesa da lei, da ordem e do respeito às autoridades, ali adiante se transmuta em protetora de crianças e adolescentes, em outra forma se apresenta como guardiã do bom gosto e com frequência cada vez maior posa de defensora da família, da moral e dos bons costumes.
O mais barulhento de todos os episódios recentes envolveu o bispo Marcello Crivella, do Republicanos (novo nome do PRB), que desde 2017 é prefeito do Rio de Janeiro. Baseado em suas convicções evangélicas, o prefeito atropelou a lei e determinou aos organizadores da Bienal do Livro que só vendessem lacrada e com aviso de que continha cenas impróprias para menores de idade uma revista em quadrinhos com cena de beijo entre dois meninos.
Crivella foi desautorizado pelo Tribunal de Justiça, mas, antes que saísse a decisão do desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes, pagou o mico do ano: divulgou nas redes sociais um vídeo justificando a censura e mandou sua tropa de fiscais até a Bienal para apreender a revista. Quando os fiscais uniformizados chegaram, não encontraram o que apreender. Os leitores usaram a melhor arma que tinham à mão para impedir a violência contra a liberdade de expressão: compraram todos os exemplares da HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças.
Preconceituoso e com a cabeça na Idade Média, Crivella interpretou o beijo gay como pornografia e "apologia do homossexualismo (sic)", típico caso de homofobia, crime equiparado ao racismo por interpretação do Supremo Tribunal Federal. Porque não se tem notícias de que Crivella tenha mandado apreender alguma revistinha que mostre desenho ou foto de beijo hétero.
O que o bispo conseguiu com a patacoada? Chamar a atenção para uma revista de circulação restrita.
Por razões diversas, foi o que aconteceu com a decisão da presidente da Câmara de Porto Alegre, Mônica Leal, ao proibir uma exposição de ilustrações humorísticas, por entender que algumas eram ofensivas ao presidente Jair Bolsonaro. Cartuns que seriam vistos por meia dúzia de gatos pingados no prédio da Câmara ganharam o mundo pela repercussão do ato autoritário. Melhor promoção os artistas não poderiam desejar.
Com imagem de moderninho, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mandou recolher das escolas públicas e inutilizar uma apostila por entender que "fazia apologia à ideologia de gênero". A apostila, destinada a estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental, traz um texto que trata da diversidade sexual e aborda diferenças entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, apresentando a definição de termos como "transgênero", "cisgênero", "homossexual" e "bissexual".
O Ministério Público instaurou inquérito para apurar “possível violação do direito à educação”, “infração aos princípios constitucionais do ensino” e “eventual lesão ao erário” na decisão de Doria de recolher o material. O livro faz parte de uma coleção distribuída pela rede paulista desde 2009, atualizada este ano e que chegou às escolas em agosto.