Endereçada à população brasileira e aos senadores e senadoras, a carta divulgada nesta terça-feira pela presidente afastada Dilma Rousseff tem outro destinatário nas entrelinhas: uma senhora chamada História. É para ela que Dilma escreveu as quatro páginas em que se declara inocente e diz que, "se consumado o impeachment sem crime de responsabilidade, teríamos um golpe de Estado".
A palavra golpe apareceu na versão final da carta, apesar de até os petistas estarem divididos em relação a ela. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, está entre os que sugeriam abrandar o discurso, sustentando que golpe era uma palavra forte demais.
– Golpe é uma palavra um pouco dura, que lembra a ditadura militar. O uso da palavra golpe lembra armas e tanques na rua – disse Haddad ao jornal O Estado de S. Paulo.
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Depois de três meses fora do poder, Dilma sabe que se dirigir aos senadores é o mesmo que falar para as emas do Palácio da Alvorada. Os votos que a transformaram em ré são suficientes para aprovar o afastamento definitivo. A defesa que faz na carta repete os argumentos usados à exaustão pelo advogado José Eduardo Cardozo.
Na carta, Dilma sustenta que não cometeu crime de responsabilidade. Como os próprios deputados e senadores admitem que ela não está sendo julgada pelas pedaladas fiscais e pelos decretos de suplementação orçamentária – pretextos legais para o impeachment –, mas pelo conjunto da obra, o texto se refere a esse ponto no sexto parágrafo: "Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo 'conjunto da obra'. Quem afasta o presidente pelo conjunto da obra é o povo e, só o povo, nas eleições".
Também é para a História, para a família e para os estrangeiros, que não compreendem bem por que ela está sendo afastada, que Dilma propõe um pacto nacional com antecipação de eleições, se for poupada no Senado. Nem o PT comprou a ideia. O presidente do partido, Rui Falcão, foi o primeiro a desencorajar a presidente a propor novas eleições.
Ao divulgar o texto e reafirmar que vai se defender no Senado, Dilma frustrou os aliados de Michel Temer que ainda sonhavam com uma renúncia para poder dizer que a iniciativa de sair foi dela. Os parágrafos finais indicam que a renúncia não está entre as opções: "A vida me ensinou o sentido mais profundo da esperança. Resisti ao cárcere e à tortura. Gostaria de não ter que resistir à fraude e à mais infame injustiça. Minha esperança existe porque é também a esperança democrática do povo brasileiro, que me elegeu duas vezes presidenta. Quem deve decidir o futuro do país é o nosso povo. A democracia há de vencer".
No mesmo dia em que divulgou a carta, Dilma recebeu a notícia de que o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, autorizou a abertura de inquérito contra ela por tentativa de obstrução da Justiça no episódio da fracassada nomeação do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil. Quando setembro chegar, Dilma já não terá foro privilegiado.