Clara Marman, 62 anos, e Luis Har, 70, foram feitos reféns pelo grupo terrorista Hamas no mesmo trágico dia 7 de outubro de 2023. Mas reconquistaram a liberdade em momentos separados. Clara voltou para casa no final de novembro, quando Israel e Hamas trocaram 105 reféns por 240 prisioneiros palestinos. Luis foi resgatado após uma operação militar em Rafah, em 12 de fevereiro.
Argentinos, Clara e Luis se conheceram em Israel e viviam em casas separadas, mesmo estando casados. No sábado dos atentados terroristas, estavam no kibutz Nir Yitzhak, onde 400 pessos morreram.
Além deles, três parentes foram feitos reféns: os irmãos de Clara, Fernando e Gabriela Leimberg, e a filha adolescente desta última, Mia Leimberg.
O casal me recebeu em um apartamento alugado no norte de Tel Aviv. Durante quase 40 minutos de conversa, contaram os momentos de desespero da manhã em que o Hamas invadiu Israel e os levou para Gaza, o dia a dia no cativeiro, a hora da separação - Clara saiu, Luis ficou - e o reencontro.
A entrevista foi feita em parceria entre GZH e a GloboNews. As imagens do vídeo acima foram gravadas pelo repórter cinematrográfico Victor Palatnik.
Segundo os familiares das vítimas, 101 reféns ainda estão em poder do Hamas em Gaza.
Leia a entrevista completa:
Como foi o dia 7 de outubro de 2023?
Luis: O dia 7 começou com alarmes e uma quantidade imensa de mísseis. E foi muito difícil até entendermos que não era algo comum, mas algo muito mais intenso. Então nos trancamos no quarto de segurança. Até que escutamos os terroristas quebrando todos os vidros e balançando as portas. Também balançaram a porta onde estávamos e conseguiram entrar. E de lá nos levaram arrastados à força com muita brutalidade.
Estavam juntos ou separados?
Luis: Estávamos em cinco pessoas da mesma família. Clara com a irmã Gabriela e a filha Mia e a cachorra. O irmão de Clara, Fernando, e eu. Nos levaram todos juntos em uma caminhonete Toyota para a Faixa de Gaza. Nos colocaram dentro de um túnel com muita selvageria. Nos fizeram correr por umas cinco ou seis horas, mais ou menos 40 metros abaixo da terra. Então, chegamos a um lugar chamado Rafah. Eles nos tiraram do túnel. Pensamos que não sairíamos, então tivemos sorte. Eles nos levaram em um carro pelas ruas de uma cidade. Até que nos meteram dentro de uma casa de uma família, no segundo piso. E ficamos lá até o final.
Vocês falavam com essa família?
Clara: Na verdade era uma casa de família, mas as pessoas que lá moravam foram evacuadas antes de que nós chegássemos. Estávamos com cinco guardas armados que cuidavam da gente, dentro e fora da casa.
Luis: Tinha vigias nas casas vizinhas, mas acredito que não tinha nenhuma família por lá. Sabíamos que um deles disse que era dono da casa e que havia evacuado sua família para protegê-los caso houvesse alguma explosão do exército de Israel.
Os terroristas pediam que vocês fizessem a comida?
Clara: Exatamente. Os primeiros dias nos trouxeram comida preparada. No começo, eles haviam se abastecido com muita comida, pois nos traziam direto, até que, em certo momento, um dos terroristas parecia que havia se cansado de cozinhar para a gente. Até trouxeram alguém para me ensinar a cozinhar para eles, mas eu disse que se fosse para comer bem, quem teria de cozinhar seria o Luis. E também era muito importante que ele tivesse algo para fazer. Na verdade, o Luis cozinha muito bem, não importa o que entreguem para ele. E uma das piores coisas de se estar em um cativeiro é que o tempo não passa. Não há absolutamente nada para fazer, só se fica encostado e sentado. E querer dar uma atividade a ele, me parecia ser bom.
Como era a relação com os terroristas?
Clara: Eles estavam todo o tempo nos vigiando. Havia um que disse que era o dono da casa, e tinha uma comunicação mais normal, mas os outros eram agressivos e gritavam o tempo todo, nos ameaçando com armas. Tinha um que passava uma faca ao nosso lado. Era uma situação muito tensa.
Eles falam em hebraico com vocês?
Clara: Falávamos um pouco em hebraico e um pouco em inglês. Eles diziam umas palavras em árabe, sobre o que nós comíamos, coisas diárias, para que nos acostumássemos. Nós os entendíamos, havia uma comunicação. Principalmente com o dono da casa.
E o fato de serem argentinos?
Luis: Desde o princípio falamos que éramos argentinos. Falaram de Messi, de futebol e nos contaram que houve uma partida entre Argentina e Brasil que a Argentina ganhou de 1 a 0.
Perguntaram o que faziam em Israel?
Luis: Não. No início dissemos que éramos argentinos, depois nos falaram sobre a possibilidade de libertar quem tivesse uma segunda nacionalidade. Havia listas, e nós figurávamos como argentinos, mas não se chegou a nenhum acordo sobre isso. No começo não falaram muito com a gente. O que houve foi muita pressão psicológica. Falavam o que era conveniente a eles, sempre colocando a culpa em Benjamin Netanyahu (primeiro-ministro de Israel) e dizendo que eles que eram os "bons".
Qual foi o pior momento?
Clara: Houve muitos momentos difíceis. Mas posso dizer que, como ser humano, surgem forças para sobreviver em momentos extremos. Havia dias que comíamos mais, dias que comíamos menos. Tomávamos banho a cada 10 dias. Mas isso era o menos importante. O momento mais difícil foi justamente quando houve o acordo, e as mulheres e crianças poderiam sair. Sabíamos que Fernando e Luis ficariam ali. E não sabíamos se eles iam ficar no mesmo lugar, se seguiriam juntos. Foi uma incerteza, saber que sairíamos e eles seguiriam. Em vez de sentir felicidade por nos libertarem, foi só um momento de felicidade ao abraçar nossos filhos e netos. Depois foi mais difícil porque deixamos parte do nosso coração no cativeiro, sem saber o que ocorria lá. Isso hoje faz com que nos identifiquemos com as famílias destruídas. Não se sabe quantos sobreviveram, mas o terrível desespero dessas famílias parece-me o mais difícil.
Vocês permaneceram juntos o tempo todo. Imagino a dificuldade da separação.
Luis: Para mim e para o Fernando, a separação foi um alívio. Por um lado porque também nos dava a ideia de que vamos sair. Por outro, sabíamos que quando partissem, Clara e a irmã iriam avisar às famílias que estávamos bem, o que seria o primeiro sinal de vida. Para mim foi extremamente importante que isso acontecesse. Por outro lado foi um alívio, porque enquanto as mulheres estavam lá, Fernando e eu sentíamos a responsabilidade de que nada aconteceria com elas. Estávamos sempre nos certificando de que não estivessem sozinhas com nenhum dos nossos guardas. Porque todo mundo sabe o que poderia acontecer. Eu sempre ficava no meio. Chamavam muito a minha sobrinha, que tinha 17 anos, para traduzir o inglês, porque ela sabe muito bem. Eu sempre me meti no meio para não permitir que ela ficasse sozinha com nenhum dos terroristas.
Eles relatavam o que estava acontecendo? Davam algum sinal que vocês iriam sair?
Luis: Falavam o tempo todo que demoraria um ou dois dias, que tudo iria acabar. Mas também foi uma guerra psicológica, que nos disseram que Netanyahu não ia resistir, que todos estavam contra ele, que iriam tirá-lo do governo, que a economia israelense era um desastre, que tudo iria ruir, e que, então, tudo iria acabar em dois dias. Essa foi a psicologia que eles usaram. Ou seja, nunca deixamos de pensar que muitas vezes as informações poderiam não ser reais.
Vocês saíram em momentos diferentes. Como pensam que poderia acontecer com os reféns que ainda estão lá?
Clara: Na realidade, gostaria que voltasse a haver um acordo e que todos saíssem, tanto os que estão vivos quanto os que não estão, para que todas as famílias possam acabar com este momento horrível. Mas se for necessária uma operação de comando, que assim seja. O importante é libertar. É claro que a preferência é por um acordo para não pôr em perigo também os reféns, nem mesmo que coloque em perigo os soldados, que, na realidade, são como nossos filhos. Sofremos por cada um dos soldados como se fosse um dos nossos filhos.
Luis, como foi o momento em que chegaram os militares?
Luis: Uma grande surpresa. Estávamos dormindo e de repente houve uma explosão. Aa primeira coisa que pensei foi que os aviões estavam bombardeando o prédio. Até que o corpo e a mente reagissem e entendessem o que estava acontecendo, era como um sequestro, como o do 7 de outubro, exatamente igual. Ou seja, o choque que se tem... Virei à direita para o lado da escada, ou para o lado onde dormiam os terroristas. Fernando me chamou: "Luis, vem para cá, para cá". Voltei agachado. Estava uma guerra lá dentro, balas voavam por toda parte. Foi aí que alguém abaixou minha cabeça, agarrou minha perna e me disse: "Luis, calma é o exército de Israel. Viemos para te levar para a casa". Ai me tranquilizei.
Como foi quando vocês se encontraram?
Clara: O encontro foi muito emocionante. Tem uma foto de nós cinco nos reencontrando. Além disso, cada um, especialmente Fernando e Luis encontrando toda a sua família, foi muito emocionante. Mas se pode dizer que é algo que ainda não foi fechado, não foi finalizado. Porque volto a dizer que a libertação dos 101 (reféns ainda em poder do Hamas) é tão importante que digamos que, como povo, sentimos que ainda não acabou. Além de ainda estarmos em guerra, o mais importante é que eles voltem ao Estado de Israel.
Vocês culpam alguém pelo que ocorreu?
Luis: Não culpamos ninguém. A única coisa que nos importa é apoiar as famílias, continuar a lutar pelo regresso de todos os 101 reféns que ainda não voltaram. E tentar espalhar pelo mundo e em Israel o que nos aconteceu, para que não se esqueçam do que aconteceu no dia 7 de outubro.
Luis: Que, pelo visto, há muita gente se esquecendo.
Com essa nova guerra, pode se esquecer o que aconteceu?
Clara: O país atravessa um momento muito difícil em que muitas pessoas são evacuadas das suas casas, não só no Sul, mas também no Norte. Muita tensão, não é algo que deveria acontecer. A humanidade não poderia permitir.
Luis: Hoje, fala-se mais da guerra do Norte, e não tanto das pessoas raptadas ou das famílias. Em outras palavras, é deixado de lado porque outras coisas estão acontecendo. E ainda não acabou, então temos que seguir em frente.
Acreditam que o Brasil poderia ajudar com algo?
Clara: Teríamos de buscar, não sei exatamente como, mas teríamos de buscar apoio para Israel em todos os países do mundo. Entender que um ataque terrorista não pode ser uma solução para qualquer tipo de conflito e pelo menos intervir para que possam haver diferentes tipos de negociações.
Luis: Acho que o apoio que o Brasil ou qualquer um dos países pode dar é ser contra todo terrorismo. Porque não é apenas Israel, é contra a humanidade. E também pode chegar ao Brasil. Mais cedo ou mais tarde chegará a todos. Se eles não pararem a tempo. Por enquanto, não param. O terrorismo tem de ser eliminado e não é apenas com Israel.
Algumas pessoas no Brasil acreditam que tanto os terroristas quanto Israel são responsáveis pela guerra. O que acham sobre isso?
Clara: Na verdade, fomos atacados enquanto estávamos em nossas casas, em nosso quarto, em nossa cama. Não somos soldados. Somos pessoas comuns que viviam tranquilamente em um kibutz. Acredito que cada pessoa possa se identificar com o que a humanidade precisa e deseja de bem-estar. É algo que eles têm de repudiar. Não poderia existir guerrilha ou terrorismo. Isso é o que deveriam pensar.
Luis: Eu penso o mesmo. Não é um ataque, uma guerra entre soldados, entre dois países. Fomos atacados em nossas casas. Somos civis. Eles nos sequestraram de forma brutal. Mataram pessoas, assassinaram. Temos que ver como tudo isso começou. O dia 7 de outubro não deve ser esquecido. Foi um ataque contra a humanidade. E não podemos permitir isso.
Depois que voltaram, qual a relação de vocês com o governo?
Clara: Eles nos receberam depois que fomos entregues e de uma forma muito calorosa. Eles nos levaram para o hospital, onde recebemos tratamento físico e psicológico. Recebemos ajuda. Poderíamos voltar para nossas casas. No início eles também nos deram moradia. Tanto o governo como o povo nos acolheram. As pessoas se voluntariaram de uma maneira maravilhosa. Nos traziam bolos, refeições, doces e roupas. Tudo o que precisamos.
Luis: Móveis, tudo que você precisa em uma casa. E ainda hoje estamos numa casa alugada que é paga pelo governo, digamos assim. E tudo aqui a gente realmente tem recebido de grupos de pessoas que se organizaram para ajudar as pessoas que estão longe de casa.
E tem informações sobre quando podem voltar para suas casas?
Clara: Sim, lá (nos kibutzim) eles tentam incentivar as pessoas a voltarem para casa. Na realidade, cada um precisa da sua própria casa. Eu também gostaria de voltar. A única coisa que me falta é a segurança de me sentir protegido como antes do 7 de outubro, em que me sentia em casa. Sentir aquela sensação de segurança novamente é a única coisa que falta.
Pensam em sair de Israel?
Clara: Não, eu realmente nunca pensei sobre isso. Sair para contar e divulgar (a história do sequestro), como já fizemos. Mas sinto que essa (Israel) é a minha casa. Adoro voltar para minha Argentina, porque sou argentina. Ver minha família. Mas em Israel tenho minhas filhas e netos. Aqui fiz a minha casa e aqui sinto que é a minha casa.