"Quartelada" é um termo antigo que nos remete aos tempos sombrios da América Latina. Hoje em dia, nem se comete golpe de Estado assim, com tanques nas ruas e militares invadindo o palácio presidencial. As intentonas costumam ocorrer de outras formas, mais sutis, questionando o processo eleitoral, a legitimidade das urnas ou corroendo, por dentro, o sistema de freios e contrapesos da democracia e a saudável separação entre os Poderes da República.
O que ocorreu na tarde desta quarta-feira (26) na Bolívia, no entanto, não tem o verniz das rupturas institucionais do século 21. É na cara dura mesmo: com tanques nas ruas e militares nas praças. Seria cômico se não fosse trágico: o homem por trás da tentativa de golpe, o general destituído Juan José Zuñiga, deu até entrevista coletiva na Praça Murillo antes de avançar sobre o Poder Executivo. Despediu-se dos jornalistas e adentrou no Palácio Quemado, a sede presidencial, em La Paz, para destituir o presidente Luis Arce.
— Vamos recuperar essa pátria — disse.
Golpe à moda antiga.
Lá dentro, teria ocorrido uma discussão entre os dois. Ora, desde quando general discute com presidente eleito? Em democracias, como a que deveria vigorar na Bolívia, as forças armadas estão subordinadas ao poder civil. Não há tutela. Não há poder moderador.
A instabilidade boliviana alimenta fantasmas no país e na região. O pano de fundo é a não aceitação, por parte do general e de seu grupo, de que Evo Morales, padrinho político de Arce, concorra à eleição presidencial de 2025. Mas a crise não é de agora. Antecessor de Arce, Morales renunciou ao cargo em novembro de 2019 seguindo um roteiro muito semelhante ao atual. Na época, o presidente era pressionado por militares e o anúncio de que deixaria o posto ocorreu depois de três semanas de protestos da oposição, que alegava fraude eleitoral.
Por fim, ao perder o apoio das forças armadas, ele caiu — quem assumiu foi Jeanine Áñez, diga-se de passagem condenada pelo Supremo Tribunal de Justiça da Bolívia a 10 anos de prisão por assumir o poder de forma ilegal.
Na atual crise, chama atenção a dificuldade da imprensa internacional em classificar a intentona em La Paz como golpe. No comunicado, Zuñiga afirmou que "haverá um novo gabinete de ministros, certamente as coisas vão mudar". Militares invandindo o palácio presidencial, inclusive um blindado tentou derrubar o portão principal, um ex-general dando ordens ao presidente e um grupo das forças armadas pregando, com armas e tanques, mudança no ministério não tem outro nome: é tentativa de golpe.