Com 30 anos de profissão, Joel Silva, conhecido entre colegas como Selva, está lançando um documentário que é uma aula de fotojornalismo. “Todas As Guerras Que Eu Vi” está disponível gratuitamente no YouTube.
Hoje com 58 anos, Joel começou a carreira nos anos 1990 em Ribeirão Preto (SP). Trabalhou no extinto Notícias Populares e, em seguida, migrou para a Folha de S. Paulo, onde ficou até 2018. Entre grandes coberturas, esteve na guerra civil da Colômbia e no conflito da Líbia, onde registrou uma das cenas que percorreu o mundo: o momento da explosão de uma bomba lançada pela aviação do ditador Muamar Kadafi. A seguir, os principais trechos da conversa:
Como surgiu a ideia de fazer o documentário?
As pessoas assistem a notícias pela TV ou as leem no jornal e, muitas vezes, não têm noção de que quem está ali, captando aquelas informações, também é um ser humano que também sofre com aquilo tudo. Mas que precisa deixar o sentimento de lado para ser o mais fiel possível ao que está ocorrendo. No front, a gente tem medo, sente falta dos filhos, da família. Quando você traz esses bastidores para o documentário, você passa para as pessoas essa impressão. No final, falo da depressão. A gente carrega tudo isso. Também tem a questão da família, é um legado que deixo para meus filhos e netos para que saibam o trabalho que elaboramos para a sociedade. Além disso, essa geração de jornalistas que está chegando agora tem uma mentalidade digital, que é ótima, mas nós, quando entramos no jornalismo, nossas referências estavam muito mais próximas da gente, na redação. Eram repórteres mais antigos, com os quais você ia aprendendo. Era uma segunda faculdade na redação. Com essa nova forma de fazer jornalismo se perdeu um pouco esse contato. Essa nova geração tem um déficit desse contato. O documentário tem um pouco esse objetivo: mostrar como se cobre um conflito, como se entra em um país em guerra.
Em um trecho do documentário, você aborda a “escola” do jornal Notícias Populares (NP). Como aquela experiência contribuiu para a sua formação como fotojornalista?
Quando fui para o NP, ele tinha três coberturas básicas: esporte, violência e mulheres seminuas. O jornal me deu oportunidade de conhecer outro lado da sociedade. Eu era distante dessa guerra que acontece na periferia de São Paulo. Aquela senhora (a mãe de um menino morto na guerra do tráfico, com a qual Joel teve contato na cena da tragédia) foi colocada ali de alguma forma para me nortear e me dizer: “Olha você tem uma obrigação com sua profissão. Não é só fazer esporte”. Esporte é legal, mas meu espírito estava mais para o lado da cobertura da violência, desse mundo social. O NP me colocou em contato com a violência urbana.
Outro momento difícil que aparece no filme é quando você fala que seu filho nasceu enquanto você estava em uma cobertura de guerra, na Colômbia. O jornalismo cobra um preço pessoal?
Quando (o jornalista) embarca para uma guerra, está indo com seus medos, com seus problemas, e deixa a sua família preocupada aqui. Quando abro essa questão do meu filho ter nascido enquanto eu estava na Colômbia quero mostrar a difícil decisão de deixar sua esposa grávida aqui e embarcar para um país em conflito. É uma coisa dificílima para nós. É um despedir-se contínuo da família: todos os dias você se despede porque você tem de ir para algum lugar porque tem de fazer o seu trabalho. É uma coisa do jornalismo: você tem de narrar o que está acontecendo no mundo e, para isso, tem de abrir mão, muitas vezes, da sua relação com a família. Quando fui para a Colômbia, minha mulher estava grávida, a 10 dias de ter o bebê. Pensei que voltaria rapidinho, e não foi. Fiquei um tempão, voltei 10 dias depois que o menino havia nascido.
Essas decisões precisam ser tomadas de forma muito rápida, né?
Muito rápida. É a sua profissão e a sua família. É algo contraditório. Você tem de estar sempre decidindo, e isso cobra um preço muito alto.
Como foi o episódio do tiro de raspão que o atingiu no Egito?
Por mais que a gente esteja preparado para esse tipo de cobertura, em algum momento pode fugir do controle. Quando cheguei ao Cairo, no dia anterior, haviam matado 800 pessoas. No dia seguinte, teve um dia de fúria. Fomos para frente de uma mesquita, nos refugiamos embaixo de um viaduto. Começou aquela tensão: helicópteros, atiradores no alto dos prédios começaram a atirar, manifestantes corriam para frente das barricadas militares. Coloquei a câmera para fazer um vídeo, apoiei no ferro do pilar e comecei a gravar. Foi exatamente quando senti um tranco para trás. Achei que o capacete estava batendo no ferro, um egípcio me mostrou uma bala. Fotografei a bala e voltei. Ele me cutucou de novo: “Você está ferido”. Vi o sangue escorrendo. Nessa hora, vale o treinamento, é manter a calma. Levei a mão no ferimento, tateei para saber a profundidade. Quando vi que estava só um pedaço de carne sangrando, senti que estava bem. Percebi que não ia morrer ali. Saí correndo, parei um carro que estava fugindo dos tiroteios, entrei e pedi para um cara me levar para fora dali. Em uma barreira militar, mostrei para um oficial que eu estava sangrando. Ele queria me levar para um hospital. Eu disse que não, que no hotel teria um enfermeiro que cuidaria do ferimento leve. Aí, um jipe me escoltou até o hotel.
Em uma de suas fotos mais famosas, captou o momento em que uma bomba lançada por forças do ditador Muamar Kadafi atinge o chão, perto de Brega, na Líbia. Como foi?
Eu não calculei aquilo, a não ser quando o rebelde entra na cena. Quando a bomba toca o solo, quem estava em volta sentia uma corrente de choque correndo pelo chão e entrando pelo corpo. Senti essa corrente. O Marcelo Ninio (repórter que o acompanhava) descreveu a cena com uma sutileza: “no momento em que a bomba toca o solo, o tempo parece congelar”. Foi o que senti. Tive milésimos de segundos para levar a câmera até o rosto e começar a fazer os disparos, enquanto o cogumelo (de fumaça) estava se formando na minha frente. Com o olho esquerdo, percebi que um rebelde estava correndo no sentido da explosão. Eu segurei mais um milésimo de segundo, até que ele entrasse na cena e eu apertasse para o último fotograma. Essa cena tem exatamente quatro fotogramas. O último é o do rebelde entrando na cena, que é a foto que correu o mundo. Tirei a foto, e não houve mais tempo: entramos no carro correndo e saímos porque a gente previa que houvesse outro bombardeio em volta. Dentro do carro, mesmo olhando para o céu, vendo se o caça estava perseguindo a gente, foi que eu vi a foto que eu havia feito. Só eu tinha aquela foto, e era importante para mostrar ao mundo que Kadafi estava bombardeando (a população), algo que ele negava.
Para onde vai a fotografia, nesse mundo multimídia, de redes sociais, em que todo mundo é um pouco fotógrafo?
O fotógrafo que brigar com o celular está perdendo tempo. Não é só ser fotógrafo: tem de aprender vídeo, áudio, todo esse universo multimídia. É função dele. O fotógrafo profissional, de jornalismo, tem de ir muito mais a fundo.