Não foi o passeio que Vladimir Putin e boa parte do mundo imaginavam. Quando os primeiros blindados russos começaram a cruzar a fronteira da Ucrânia e as explosões irromperam no céu de várias cidades da Ucrânia, há exatos dois anos, lembrados neste sábado (24), alguns imaginaram um conflito fulminante, ao estilo dos americanos no Iraque de Saddam Hussein, cuja capital, Bagdá, caiu em poucos dias.
Quando cheguei ao Leste Europeu, como enviado especial do Grupo RBS, nos dois primeiros dias da guerra, a sensação era de que a Rússia chegaria à fronteira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) muito rapidamente. Não raro o medo era de um confronto direto com a aliança atlântica. Já dentro da Ucrânia, onde ingressei no oitavo dia de guerra, testemunhei uma fuga desesperada de refugiados, enquanto Kiev sucumbia.
Incrivelmente, passados os primeiros meses de conflito, as forças ucranianas, como Davi perante Golias, resistiram. A Rússia perdeu as batalhas da capital, de Kharkiv e Kherson. Conquistou Mariupol, depois de um dos maiores cercos da história militar recente, levando a importante cidade do sul da Ucrânia a se tornar a Dresden do século 21. Há vários meses, o front de mil quilômetros quase não se move. A vitória russa em Avidiivka, em fevereiro, foi a primeira grande mudança no mapa do conflito desde Bakhmut.
Em uma guerra de atrito como a que se transformou o cenário militar na Ucrânia é difícil dizer quem está vencendo. Ainda na metáfora bíblica de Davi x Golias, um país pequeno como a Ucrânia resistir dois anos ao gigante russo, potência nuclear, pode ser considerado uma vitória. Números, há muito tempo, não contam a história da guerra - ainda mais em tempos de desinformação digital. A Ucrânia diz que a Rússia perdeu 315 mil militares. A Rússia afirma que a Ucrânia sofreu 385 mil baixas. Particularmente, duvido que, sob a névoa da guerra, se conte exatamente cada um dos caídos de um lado e outro.
Um olhar sobre o mapa da ocupação permite uma visão mais completa: hoje, 18% do território da Ucrânia está ocupado pela Rússia - incluindo a Crimeia, invadida em 2014, e parte do Donbass e de Donetsk. Imagine a boca de um jacaré apontando da Rússia para a Polônia. É mais ou menos o naco de terra que Putin abocanha.
Muita coisa não deu certo nessa guerra - e não foi só nos planos de Putin. A contraofensiva militar ucraniana, em 2023, não funcionou, assim como, no plano econômico, as sanções impostas pelo Ocidente pouco foram eficientes no objetivo de asfixiar a Rússia. Hoje, para usarmos outra metáfora, agora do futebol, a bola está com o lado russo, que, além da itória em Avdiivka, cabeça de ponte para um avanço sobre o interior ucraniano, detém o controle do espaço aéreo desde o início da guerra e vê o inimigo perder munição. Aliás, essa é uma guerra curiosa: reúne aspectos do início do século 20 com aquilo que há de mais moderno no campo de batalha. Assim como o teatro de operações envolve guerra de trincheiras como na Primeira Guerra Mundial, arame farpado, intenso uso de artilharia e blindados, observa-se mísseis de precisão, drones (alguns kamikazes e outros marítimos) e táticas de cyberwar e desinformação por meio de redes sociais.
Voltei da Ucrânia após duas semanas de cobertura, e a pergunta que mais me fizeram nos primeiros dias era: "até quando vai a guerra?" Passados dois anos, minha resposta é a mesma: o conflito vai durar até quando o Ocidente sustentar o apoio à Ucrânia. No dia seguinte que o dinheiro (e as armas) pararem de chegar, Kiev cai. Esse dia pode estar mais perto, se depender do favoritismo de Donald Trump sobre Joe Biden nas eleições americanas. Se o republicano voltar ao poder, tudo indica que ele irá entregar a Ucrânia nas mãos de Putin, encerrando a ajuda militar, o que aliás, deixa a Europa de cabelo em pé. Não à toa o continente se fortalece militarmente. Uma das grandes conclusões possíveis da Conferência de Segurança de Munique, na semana passada, é de que, pela primeira vez, não foi preciso que os americanos pedissem que os parceiros de Otan garantam, ao menos, os 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Defesa. Dezoito dos 31 membros prometem fazer o tema de casa neste ano.
Até lá, ainda que os recursos sejam mais escassos do que no início do conflito, o apoio ocidental segue. Os EUA já deram mais do equivalente a R$ 360 bilhões em ajuda total à Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022. A União Europeia e outros países continente mandaram R$ 770 bi. Muito do foco americano foi desviado para a guerra entre Israel e Hamas. Há também o apoio interno à guerra, que diminuiu nos EUA, o que favorece Trump e a persgunta de "por que estamos mandando dinheiro para um conflito que não é nosso?" Mas ainda assim, Biden tenta aprovar no Congresso, aos trancos e barrancos, novo pacote, de R$ 472 bi em ajuda - que iria, além da Ucrânia, também para Israel e Taiwan.
Ok, a guerra termina - e a Ucrânia sucumbe - sem apoio externo. Mas o que viria depois? Por certo, Putin se sentiria vitaminado para avançar sobre a Moldávia ou, quem sabe, os países Bálticos - Letônia, Lituânia e Estônia. O sonho que, mesmo dois anos depois do início da guerra da Ucrânia, pulula as noites do Kremlin ainda é recompor o território da antiga URSS - quiçá, do Império Russo.