Pode-se questionar métodos, táticas, erros e a incompetência do governo de Israel, liderado pelo primeiro-ministro populista Benjamin Netanyahu, cuja ganância por poder levou a falhas de segurança e inteligência que expuseram a nação ao maior ataque terrorista da História, em 7 de outubro. Também é possível criticar as falas tresloucadas de membros de seu gabinete, como a de Yoav Gallant, ministro da Defesa israelense, que a certa altura da guerra contra o Hamas disse que Israel "lutava contra animais", ou de Amichay Eliyahu, titular da pasta do Patrimônio, que sugeriu uma "bomba nuclear em Gaza".
Mas daí a considerar genocídio, uma palavra que carrega o peso histórico da maldade humana, as ações de guerra de Israel em Gaza é algo descolado da realidade. Mais distante ainda é a acusação de que a ofensiva israelense contra o Hamas esconderia a política intencional de um Estado para exterminar um povo, o palestino.
A petição apresentada à Corte Internacional de Justiça (CIJ), de Haia, é uma manobra de propaganda que diz muito mais sobre o autor, a África do Sul, do que sobre o acusado, Israel.
Para entender o que está por trás dessa jogada, é preciso voltar no tempo, rememorar a histórica e por vezes controversa relação entre os dois países, que tiveram em comum 1948 como ponto de inflexão. Esse foi o ano de nascimento do Estado de Israel, e, ao mesmo tempo, do início do regime de segregação racial na África do Sul, o apartheid.
Por décadas, Israel vendeu armas para o governo racista liderado pelo Partido Nacional na África do Sul como parte de uma política externa que tinha como objetivo diversificar compradores para a crescente indústria de Defesa israelense. Durante os 27 anos em que esteve na prisão, o histórico Nelson Mandela, fundador do Congresso Nacional Africano (CNA), então um grupo considerado terrorista, costumava dizer que apenas três líderes no mundo se preocupavam com seu destino: Fidel Castro, Muamar Kadafi e Yasser Arafat, esse último o fundador da Organização para a Libertação Palestina (OLP).
Com os primeiros ventos da mudança soprando no sul do continente africano, a partir dos anos 1990, Israel passou a estabelecer contatos com o CNA, que, com o fim do apartheid, se tornaria governo. A identificação entre os herdeiros de Mandela e a luta palestina, entretanto, não seria desfeita. Tanto que, até hoje, representantes do Hamas se encontram com autoridades sul-africanas: eram conhecidas as relações entre o ex-presidente Jacob Zuma com Khalid Meshal, ex-dirigente do Hamas que hoje vive no Catar, e da atual ministra das Relações Internacionais, Naledi Pandor, com Ismail Haniya, a mente por trás do massacre de 7 de outubro. Em dezembro, Bassem Naim, outro expoente da organização terrorista, esteve em Pretória para participar de uma marcha em homenagem a Mandela e chegou a depositar flores junto à estátua do líder morto.
A verdade é que o CNA transformou-se em um partido corrupto, ineficiente e prestes a falir, mas que ainda vive sob os auspícios da revolução. Sob o a presidência de Ciryl Ramaphosa, que apresentou a petição contra Israel em Haia, a África do Sul vive contínuos apagões de energia elétrica, crise de abastecimento de água, aumento do desemprego e da inflação.
Em maio, Ramaphosa buscará a reeleição após cinco anos de mandato. Nada mais fácil para um governo em crise de popularidade - pela primeira vez o CNA caiu a menos de 50% de apoio popular - do que adotar a tática do inimigo externo: Haia é a sua tábua de salvação. O curioso é que o oportunismo de Ramaphosa elegeu como inimigo da vez Israel e não Vladimir Putin, cujas ações na Ucrânia o elevam ao nada nobre panteão dos criminosos de guerra. No caso do amigo russo, o governo sul-africano foi relutante ao prometer cumprir a ordem de prisão internacional, caso Putin pisasse no país, no ano passado. No caso de Israel, Ramaphosa optou por uma ação enviesada, aproveitando-se da memória popular de Mandela para uso político interno, escorado na suposta proteção de parceiros do Brics, como o Brasil, para ganhar plateia internacional.