Samuel Pinheiro Guimarães Neto, que morreu nesta segunda-feira (29), aos 84 anos, foi um dos expoentes da diplomacia brasileira nos séculos 20 e 21. Ao longo de sua trajetória, era um dos poucos diplomatas capazes de combinar ação prática da política, em diversos cargos da burocracia estatal, com reflexão intelectual e condução de temas das relações exteriores.
Amigo pessoal de Celso Amorim e do atual chanceler, Mauro Vieira, o embaixador aposentado conhecia como poucos os bastidores do poder em Brasília, ambiente que frequentou com tanta assiduidade quanto os fóruns internacionais representando o país.
Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ e mestre em Economia pela Universidade de Boston, Pinheiro ingressou no Itamaraty em 1963. Perpassou na carreira diplomática a ditadura militar, os primeiros anos da redemocratização e os dois primeiros mandatos de Lula. Nem sempre com tranquilidade.
O perfil crítico o levou a sucessivos afastamentos pelos governos de turno. Na ditadura militar, com apenas dois anos de carreira diplomática, foi exonerado em 1965 da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) por resistir à interferência da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Sob a presidência de João Batista Figueiredo, deixou a vice-presidência da Embrafilme em meio à crise deflagrada pela polêmica obra "Pra frente, Brasil", que exibia ao país e ao mundo a tortura no regime pós-1964.
No governo Fernando Collor de Melo, Pinheiro mais uma vez se rebelou contra a agenda presidencial, tendo sido contrário à rápida abertura às importações. Defensor das relações do Brasil com os vizinhos do Cone Sul, no mandato de Fernando Henrique Cardoso tornou-se um crítico do ingresso do país na Alca (Área de Livre-Comércio das Américas), projeto capitaneado pelos EUA do governo George W. Bush.
Aliás, Pinheiro foi um dos maiores críticos das guerras americanas travadas no Afeganistão e no Iraque sob o governo republicano. No episódio em que os EUA desencadearam uma operação para forçar a saída do embaixador José Maurício Bustani da chefia da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) por discordarem de seus interesses, ele foi uma das poucas vozes públicas a se colocar ao lado do brasileiro - à época, o governo de FHC se calou.
O embaixador serviu por seis anos como cônsul em Boston e, depois, como conselheiro da missão brasileira junto à ONU. Foi autor de vários livros, entre eles "Quinhentos Anos de Periferia", no qual analisa em profundidade a situação do Brasil no mundo.
Foi nos primeiros dois mandatos de Lula, entre 2003 e 2009, que galgou o segundo posto de maior poder e prestígio no Itamaraty, a Secretaria-Geral, abaixo apenas do comando da chancelaria. Foi um período turbulento da geopolítica - além dos confrontos no Oriente Médio e Ásia Central, havia a crise econômica global. Em 2011, ele passou a exercer o cargo de alto representante para o Mercosul, uma de suas paixões. Desde que deixara o cargo por denunciar falta de apoio dos membros, era frequentemente convidado a dar entrevistas sobre o bloco econômico devido a seu amplo conhecimento sobre as articulações.
Muito ligado ao PT, mas respeitado por colegas críticos a Lula, como Paulo Roberto de Almeida, Pinheiro adotava palavras duras, pouco afeitas ao manual da diplomacia, para se referir a adversários ideológicos: "Ernesto Araújo é rídículo", chegou a dizer, referindo-se ao primeiro chanceler do governo Jair Bolsonaro.
Embora costumasse elevar a voz para ressaltar suas opiniões, era um defensor intransigente da não intervenção em temas internos de outros países.
- Não se dá palpite, cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia - costumava afirmar.
Também defendia que o maior desafio da política externa atual era resistir às pressões para aderir a acordos de livre comércio, que considerava restritivos da liberdade de formulação da agenda econômica em geral, com efeitos na política propriamente. Também estava preocupado em como o Brasil poderia aproveitar a emergência da China como segunda potência mundial para a reindustrialização do país.
Sem dúvidas, Pinheiro foi um dos maiores diplomatas da sua geração - talvez o maior. E, curiosamente, sem nunca ter chegado a chanceler nem embaixador em Washington, a joia da coroa do Itamaraty, ou outros postos prestigiados do chamado "circuito Elizabeth Arden" - o apelido interno para o grupo de embaixadas que ficam localizadas em capitais de tradicional respeito cultural, político e socioeconômico (além da cidade americana, Roma, Paris, Londres), as preferidas de embaixadores e embaixatrizes.