Houve um tempo em que as redes sociais eram plataformas digitais que, por permitirem a troca acelerada de informações instantâneas, sem distinção de fronteiras ou regimes, facilitava a comunicação entre os seres humanos, elevava a globalização a novo patamar e facilitava vozes silenciadas por ditaduras. No início da segunda década do século 21, Twitter (atual X) e Facebook ajudaram populações oprimidas a abrir frestas pelas quais poderiam denunciar os desmandos de ditaduras. Antes de se reunir na Praça Tahir, no Egito, por exemplo, os jovens que derrubaram da noite para o dia 30 anos de tirania de Hosni Mubarak encontravam-se na Ágora digital. Vi, como enviado especial do Grupo RBS ao norte da África, palco da chamada Primavera Árabe, estudantes, médicos, advogados e comerciantes se organizando pelas redes sociais para pegar em armas contra o regime de Muamar Kadafi. Não à toa déspotas de plantão, dos aiatolás do Irã ao czar do Kremlin, passaram a “desligar” a internet em seus países diante da ameaça representada pela comunicação sem fronteiras.
Mas, assim como os ventos de liberdade trazidos pela revolta árabe virariam de volta ao autoritarismo ou ao caos, nos casos do Egito e da Líbia, respectivamente, as redes sociais se tornaram canais pelos quais jorram também boa parte do esgoto da sociedade. Sinais apareceram em 2013, no Brasil, mas a ficha caiu, mesmo, na eleição presidencial nos Estados Unidos, com o escândalo da Cambridge Analytica, quando dados de mais de 50 milhões de usuários do Facebook foram utilizados sem o consentimento pela empresa de consultoria para fazer propaganda política para Donald Trump.
Nem as redes sociais nem nós, usuários, seríamos os mesmos desde então. De lá para cá, as chamadas big techs, o que inclui as redes sociais, seriam acusadas de práticas comerciais desleais, fraude em métricas de publicidade, propagação de notícias falsas e divulgação de conteúdos tóxicos, como pedofilia e discursos de ódio. Em 2019, um supremacista branco transmitiu ao vivo pelo Facebook o massacre que realizou na mesquita de Al Noor e no Centro Islâmico Linwood, em Christchurch, na Nova Zelândia.
Foi a gota d’agua. Puxados pela União Europeia (UE), vários países começaram a discutir alguma forma de regulamentar o descontrole nas redes. O bloco europeu tem, no Digital Services Act (DSA), o mais robusto conjunto de leis para um mercado digital seguro e aberto, protegendo os direitos fundamentais dos usuários e estabelecendo condições equitativas para as empresas. Proposto pela Comissão Europeia em dezembro de 2020, é parte de um processo maior de regulação do ambiente digital que ocorre desde 2010. Os Estados Unidos buscam o seu modelo. Nova Zelândia e Austrália alcançaram algum consenso. E o Brasil também tentou. Um projeto de lei, apelidado de “PL das Fake News”, esbarrou no lobby das big techs e na oposição de parlamentares que viram censura na iniciativa. O debate foi posto de lado, por enquanto, mas deve ser retomado.
Atenta à intensificação da desinformação e discursos de ódio online, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) anunciou, neste mês, a publicação de um plano de ação para regulamentar as plataformas digitais. O manual é destinado a governos e setor privado, de olho em um ano eleitoral muito movimentado em 2024, quando serão realizados pleitos em 81 países, entre eles o Brasil.
– A regulamentação das redes sociais é um desafio democrático – disse a diretora-geral do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Audrey Azoulay, em uma coletiva de imprensa em Paris. – Para proteger o acesso à informação, devemos regular essas plataformas sem demora, protegendo ao mesmo tempo a liberdade de expressão e os direitos humanos – completou.
Para elaborar essas diretrizes, a agência se baseou em um amplo processo de consulta realizado entre agosto e setembro em 16 desses 81 países, com a participação de quase 8 mil pessoas. Os dados são curiosos: 87% dos entrevistados acreditam que a desinformação representa uma “ameaça real” e estão preocupados com seu impacto nas disputas eleitorais. Esse temor é agravado pela inteligência artificial e pelo uso de algoritmos na moderação de conteúdo. Embora 68% afirmem que a desinformação é mais disseminada nas redes sociais do que na mídia tradicional, essas mesmas plataformas são uma fonte de informações “frequente” para 56% dos entrevistados, à frente da televisão (44%). Sessenta e sete por cento dos usuários da internet já encontraram discursos de ódio em plataformas como Facebook, TikTok ou X (antigo Twitter), sobretudo no caso de pessoas LGBTQIA+ ou pertencentes a minorias étnicas.
O manual pode ser baixado em unesco.org/pt, com versão em português. Deveria ser leitura obrigatória para eleitores e políticos que pretendem disputar cargos públicos em 2024. Até porque, há anos, as redes sociais deixaram de ser apenas o local onde se postam fotos de gatinhos e flores.