Pequeno emirado do Golfo Pérsico, o Catar, sede da Copa do Mundo de 2022, tornou-se um interlocutor fundamental entre inimigos na guerra entre Israel e Hamas.
Chama atenção que a abertura da passagem de Rafah para a saída do primeiro grande grupo de estrangeiros da Faixa de Gaza, nesta quarta-feira (1º), só foi possível graças à negociação do diminuto país, que vem ganhando projeção internacional de uns anos para cá como influente ator nas decisões geopolíticas do Oriente Médio. Na ausência de um mediador para a crise, o Catar, ainda que visto com suspeitas por muitos no Ocidente por abrigar líderes do Hamas, pode ser importante para a libertação dos reféns tomados pelo grupo terrorista em 7 de outubro e para, quem sabe, um cessar-fogo.
Há pelo menos 10 anos, enquanto a população palestina sofre em Gaza, alguns comandantes do Hamas vivem no Catar e aproveitam a luxuosa vida no emirado teocrático. Líder máximo do grupo terrorista, Ismail Haniyeh, e o ex-chefe e fundador da organização, Khaled Meshaal, por exemplo, moram lá.
O governo catari envia há pelo menos cinco anos dinheiro para Gaza como forma de romper o isolamento imposto por Israel. Há suspeitas de que esses recursos, na faixa de US$ 30 milhões por mês, sejam desviados no caminho e, em vez de terem como destino ajuda para a população, acabem nas mãos do Hamas.
Essa proximidade com os extremistas e seu padrinho político, o Irã, levou vários países árabes a romperem relações diplomáticas com o Catar em 2017: Arábia Saudita, Egito, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Líbia e Iêmen acusaram o país de apoiar o terrorismo e impuseram um bloqueio logístico e econômico à nação. A reaproximação só ocorreu quatro anos depois.
Depois do ataque terrorista do dia 7 de outubro, foi em Doha, a capital, que o ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir Abdollahian, se reuniu com Haniyeh, no dia 14.
O emir Tamim bin Hamad al-Thani, que ocupa o trono catari, tira proveito dessa ambiguidade estratégica: ao mesmo tempo em que abriga a cúpula do Hamas, o país sedia a principal base aérea dos Estados Unidos na região, Al-Udeid, onde fica o Comando Central americano, fundamental para as operações no Iraque e na Síria contra os extremistas do Estado Islâmico, por exemplo.
Há um ano, o Catar adquiriu o status de membro não aliado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao mesmo tempo em que dialoga com inimigos declarados da aliança atlântica. Ironia? Não. Estratégia política.
Em 2020, o país serviu de palco para um acordo histórico entre os EUA e o Talibã. Em Doha, representantes do governo de Donald Trump e do grupo fundamentalista islâmico acertaram que as tropas americanas deixariam o Afeganistão, desde que a milícia prometesse não voltar a abrigar células terroristas da rede Al-Qaeda - o que viria depois, na saída caótica de Cabul, sob o governo de Joe Biden, em 2021, é outra história.
Para se mostrar um interlocutor confiável aos olhos ocidentais, o Catar vem implementando uma nem tão silenciosa campanha de soft power (o chamado "poder suave" das Relações Internacionais). Além de ter sediado o Mundial da Fifa, em 2022, Doha recebeu corridas de Fórmula 1 em 2021 e 2023. A tática de propagar uma imagem conciliadora mira a conquista de novos mercados e a inserção no roteiro de trocas comerciais internacionais.
Com 11.437 quilômetros quadrados de extensão (quase duas vezes a área do Distrito Federal, no Brasil), o país tem 2,6 milhões de habitantes. Trata-se de um rico território encharcado de gás e petróleo. Do ponto de vista político, está espremido entre lideranças históricas islâmicas com maior economia, população e exércitos. Por isso, tenta balancear poder na relação com os vizinhos por meio de outras capacidades que passam à margem do hard power ("poder duro").
Apesar desse verniz modernizante, entretanto, partidos políticos são proibidos no Catar e não há eleições parlamentares desde 1970. Tanto quanto a Arábia Saudita e o Irã, o reino viola direitos humanos (LGBTQ+ é crime, por exemplo), não permite oposição e pune dissidentes.