Havia um tempo em que expressões como “Protocolo de Kyoto”, “mercado de carbono” ou acrônimos como “COP” eram desconhecidos da maioria dos brasileiros. Mesmo um marco, a ECO-92, o encontro que colocou o Brasil no mapa das discussões globais sobre proteção ao ambiente, costuma ser pouco lembrado. Afinal, naqueles turbulentos anos 1990, o Brasil tinha muitos temas internos com que se preocupar: os escândalos de corrupção, o impeachment do primeiro presidente eleito na redemocratização, o vaivém da economia, o Plano Real...
Mesmo que, a cada ano, o mundo se reunisse para discutir mudanças climáticas, questões como a inundação de Kiribati, Tuvalu, Fiji, Tonga e Salomão e o recrudescimento da intensidade de furacões no Caribe eram preocupações distantes. Enchentes, por aqui, eram pontuais. Um verão mais quente do que os outros. Um inverno com mais chuva. E tudo bem. Ao mundo, o Brasil exibia dados sobre a Amazônia. Havia críticas. Mas tudo era esquecido.
Esse mundo é passado.
De uns anos para cá, os efeitos do aquecimento global são cada vez mais presentes. Neste 2023 trágico no Rio Grande do Sul, com estiagem no verão e enchentes históricas, como a do Vale do Taquari no inverno e a da Região Metropolitana nesta semana, demonstraram o quanto os efeitos das mudanças climáticas, em conjunto com o El Niño, podem ser devastadores. Não é um fenômeno isolado. Em nível global, cidades inteiras estão sendo atingidas. Não à toa especialistas consideram 2023 o ano em que experimentamos uma prévia do futuro.
Ainda que pareça novidade, as mudanças climáticas em si vêm sendo debatidas há décadas nas chamadas COPs, Conference of Parties, ou Conferência das Partes em português. São uma espécie de reunião de condomínio global, em que cada país lava a roupa suja. São expostos, ao longo de duas semanas, o que cada “condômino”, ou governo, está fazendo pelo prédio todo (no caso, o planeta). Essas conferências anuais são uma forma de garantir que as nações firmem compromissos com a agenda ambiental, determinando ambições e responsabilidades.
O primeiro encontro do tipo ocorreu em 1995, em Berlim (Alemanha). Na COP3, foi criado o Protocolo de Kyoto (Japão, que sediou o evento), que propôs metas de contenção das emissões de gases que provocam o efeito estufa. Uma das mais importantes foi a COP de 2015, a de número 21, na qual nasceu o Acordo de Paris, responsável pelo compromisso de uma mobilização global para limitar a temperatura terrestre em 2ºC acima dos níveis anteriores à Revolução Industrial – tendo como meta ideal 1,5ºC. Esse é o limite além do qual cientistas dizem que incêndios florestais, inundações, calor e seca cada vez mais severos superarão a capacidade da humanidade de se adaptar.
Falta pouco: o planeta já aqueceu 1,2ºC desde o pré-industrial. Segundo o boletim anual de gases do efeito estufa da Organização Meteorológica Mundial (OMM), publicado neste mês, a concentração de gases na atmosfera bateu recorde em 2022, em tendência de alta que não parece mudar.
– Apesar de décadas de advertência por parte da comunidade científica, seguimos no caminho errado – disse o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas. – Os eventos se tornarão cada vez mais extremos.
O climatologista Francisco Eliseu Aquino, do Centro Polar e Climático da UFRGS, afirma que a conta por séculos de descaso com o clima chegou antes do esperado:
– O termo “emergência climática” envolve tudo o que nos afeta, por exemplo, hoje no Brasil, sejam ondas de calor, precipitação extrema, estiagens, distribuição de energia elétrica, falta d’água, acesso à saúde, educação, perda de diversidade e desmatamento.
Ele recorda que a comunidade científica alertava há mais de 30 anos que chegaríamos a um cenário como o experienciado na atualidade.
– Obviamente, imaginamos cenários difíceis, mas a realidade é ainda mais difícil do que imaginávamos, lamentavelmente – afirma. – Por onde você procurar na Terra, nos últimos meses, há eventos recordes.
Para o Rio Grande do Sul, diz o pesquisador, é esperada a conclusão de um ano de vários marcos superados: perdas de vida e de biodiversidade e inúmeros impactos econômicos.
– As ondas de calor que tivemos no inverno também são fora da curva, se colocarmos um século de análise de dados. Os recordes de temperatura nesses últimos meses, de setembro pra cá, no Brasil central, já são cientificamente atribuídos à mudança do clima. Essas chuvas e essas temperaturas tão elevadas só são possíveis em um cenário de mudança climática causada pela humanidade, o chamado antropoceno – avalia.
Não é simples arregimentar os 193 países que integram as Nações Unidas, com realidades tão diversas, para um acordo comum para conter a elevação das temperaturas globais: para que se evite a catástrofe climática, o mundo deve, de forma conjunta, reduzir emissões de gases poluentes, aqueles que produzem o efeito estufa, em 40% até 2030, segundo a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC).
A equação é complicada: como reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis sem prejudicar a economia, por exemplo? Ainda mais em um cenário complexo como o que vivemos, em meio a guerras, como entre Ucrânia e Rússia, que fez a Europa religar usinas de carvão, e em meio a um novo conflito no Oriente Médio, que mexe com o volátil preço do petróleo. A transição para uma “economia verde” não necessariamente ocorre com a urgência necessária para conter o aumento da temperatura. E, entre tantos desafios, há ainda a cobrança sobre quem pagará a conta histórica: no entendimento de muitos, países desenvolvidos, que atingiram tal nível de riqueza graças à exploração de combustíveis fósseis, teriam de pagar mais pelo mundo em ebulição do que as nações em desenvolvimento – e, inclusive, ressarcir àquelas que já sofrem com os efeitos dos danos climáticos.
A última COP, a de número 27, em Sharm el-Sheikh (Egito), debateu de onde sairão os US$ 100 bilhões anuais dedicados aos países mais vulneráveis. Foi acordado que seria criado um fundo de “perdas e danos” usado para que os países mais ricos pagassem uma “indenização” aos mais pobres, que enfrentam mais fortemente os efeitos das alterações climáticas. Como isso irá funcionar, não está claro. Como em toda reunião de condomínio que se preze, um que outro condômino mais arredio se recusa a abrir a mão: no caso da COP27, foram os EUA esse vizinho incômodo, que descartou o pagamento de reparações climáticas por suas emissões históricas. A eliminação de combustíveis fósseis parece ser um caminho para reduzir o aquecimento global. Mas como? Quando? Com que rapidez?
Imaginamos cenários difíceis, mas a realidade é ainda mais difícil. Por onde você procurar na Terra, nos últimos meses, há eventos recordes.
FRANCISCO ELISEU AQUINO
Climatologista da UFRGS
Por tudo isso, o “condomínio-mundo” estará reunido a partir da próxima quinta-feira (30/11), em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, até dia 12, para a COP28. Além do avanço em direção ao cumprimento das metas do Acordo de Paris, a conferência vai discutir temas como a aceleração da mudança para fontes de energias limpas para reduzir as emissões dos gases antes de 2030; a distribuição de dinheiro dos países ricos para os pobres e trabalhar num novo acordo para as nações em desenvolvimento focando na natureza e nas pessoas.
Praticamente todos os países do mundo estão convidados. Embora não se tenha a confirmação até agora dos presidentes dos EUA, Joe Biden, e do chinês Xi Jinping, estarão presentes o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, e o rei Charles, por exemplo. O Brasil, com o presidente Lula à frente, terá uma das maiores delegações, com 15 ministros. Também estarão lá organizações não governamentais, instituições de pesquisa e entidades empresariais e do agronegócio.
Recentemente, Simon Stiell, secretário-executivo da UNFCCC, afirmou que “o mundo quer saber exatamente a que velocidade estamos indo e em que direção”:
– Se a ambição climática é a nossa estrela do Norte, precisamos de um caminho claro traçado para o Norte, não alguns graus a Noroeste, com uma vaga sugestão de que há lacunas e que é preciso fazer mais.
Além das guerras atuais, a COP28 ocorre em um mundo cada vez mais polarizado, com negacionismo crescente da ciência, como se viu em movimentos antivacina, durante a pandemia, e no qual se aglutinam forças dispostas a rejeitar evidências como o aquecimento global. Some-se a isso a dificuldade de organismos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) de atuar para orquestrar reações globais frente a desafios comuns da humanidade.
– É um momento difícil para o engajamento multilateral. Estejamos unidos pelo conhecimento de que a mudança climática é nosso desafio comum e que, aqui, todos nós nos beneficiaremos das soluções e todos sofreremos com o fracasso em encontrá-las – afirmou Stiell.
Se no campo do multilateralismo está difícil unir esforços, ao menos é possível vislumbrar iniciativas bilaterais. Há duas semanas, EUA e China, os dois maiores poluidores do mundo (responsáveis por 38% dos gases de efeito estufa do planeta) concordaram em enfrentar juntos o aquecimento global, aumentando investimentos em energias eólica, solar e outras renováveis. Se a China vai eliminar gradualmente seu intenso uso de carvão ou parar de permitir e construir novas usinas é outra questão. Mas a concordância dos dois países já é um caminho.
O engajamento empresarial
Além do meio político, muitos empresários se deram conta de que transigir de agendas ambientais pode resultar em perdas econômicas. Em algum momento, os trilhos do desenvolvimento e da sustentabilidade se encontraram. O setor empresarial virou a chave da dicotomia preservação do meio ambiente versus ganhos financeiros. Para grandes empresas presentes na COP28, algumas delas brasileiras, não se trata mais de colocar o foco apenas no lucro, mas também de se dar conta de que são parte de um ecossistema. Segundo um estudo do pesquisador indiano Raj Sisodia e do empresário americano John Mackey, consolidados no livro Capitalismo Consciente, as empresas mais lucrativas são aquelas que têm características sustentáveis.
Para Davi Bontempo, gerente executivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a COP28 dá seguimento às tratativas de como financiar países em desenvolvimento, mercado de carbono, adaptação climática e de como lidar com eventos extremos:
As grandes empresas já entenderam que sustentabilidade faz parte de sua estratégia corporativa, mas a gente precisa intensificar isso para as micro e pequenas.
DAVI BONTEMPO
Gerente de Meio Ambiente na CNI
– Quando se fala de estratégia, falamos de competitividade com sustentabilidade. Há muitos anos, a gente reverbera isso, principalmente com empresas da base do setor industrial, olhando também para as micro e pequenas empresas. Já identificamos que as grandes (empresas) já entenderam que sustentabilidade faz parte de sua estratégia corporativa, mas a gente precisa intensificar isso para as micro e pequenas, olhando para suas dificuldades, muitas preocupadas com fluxo de caixa do mês seguinte.
Também o agronegócio brasileiro levará um posicionamento à COP28 já demonstrado durante a Expointer deste ano. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) defende que a produção brasileira seja vista em Dubai como parte da solução para o aquecimento global. Tanto que entregou ao governo brasileiro posicionamento de combate ao desmatamento ilegal e ao fortalecimento de políticas de desenvolvimento regional, por meio de mecanismos de financiamento previstos na Convenção do Clima. O vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Domingos Antônio Velho Lopes, explica que o setor já tem uma agricultura com menos emissão de carbono e utiliza técnicas preservacionistas que conservam e recuperam o solo, a água e o ambiente como um todo.
– O setor agrário mundial mudou sua participação nas COP desde a COP26, em Glasgow (Escócia). Foi o momento em que foi formado o grupo de Koronívia, que versa sobre a atividade primária (agrícola, pecuária e silvícula), como parte da solução das emissões dos gases de efeito estufa. Naquela data, Alok Sharma (presidente da COP26) buscou na agricultura de baixo carbono brasileiro o modelo para o grupo, a ser seguido mundialmente para segurança alimentar e resiliência produtiva – explica.
A atividade primária é a única que pode sequestrar carbono, diminuir emissão e, mais do que isso, armazenar carbono do solo.A COP de Dubai, mais uma vez, vai ratificar essa posição.
DOMINGOS ANTÔNIO VELHO LOPES
Vice-presidente da Farsul
Desde então, conforme Lopes, o setor produtivo começou a participar de forma efetiva das COPs e da Semana do Clima, em Nova York.
– A atividade primária é a única que pode sequestrar carbono, diminuir emissão e, mais do que isso, armazenar carbono do solo. É a única atividade primária produtiva com essa capacidade. A COP de Dubai, mais uma vez, vai ratificar essa posição – afirma.
O Brasil terá três estandes no ExpoCity Dubai, o megacomplexo onde se realizará o evento: o do governo federal, o da CNI e o do Consórcio da Amazônia Legal, que reúne os nove Estados da Região Amazônica. Neste último, uma novidade desde a última COP, serão seis painéis por dia, com temáticas como a realização da COP30 em Belém, no Pará, sistemas agroalimentares, financiamento climático, florestas, povos e comunidades indígenas, entre outras.
– Será mais um espaço para a gente ampliar as discussões, mostrar a relevância da Amazônia para o restante do mundo e fortalecer os Estados que compõem a Amazônia legal – diz Gabriela Camargos, representante do Consórcio da Amazônia Legal.
Novas metas possíveis
Lideradas pelo Observatório do Clima, 61 organizações brasileiras se uniram para cobrar do governo federal a apresentação de um cronograma para a eliminação gradual de combustíveis fósseis até 2050. A intenção é que os países se comprometam a cumprir metas: redução de pelo menos 43% da exploração e queima até 2030, e de 60% até 2035.
– Estamos indo à COP com diagnóstico importante: o objetivo do Acordo de Paris foi firmado em 2015, e coloca que precisamos fazer um esforço para não aquecer o planeta em mais de 2ºC. Esse parâmetro é importante porque hoje, com esses eventos climáticos extremos, estamos com aquecimento médio de 1,1ºC, 1,2ºC, e a gente já está vendo impactos inimagináveis. Esses impactos não foram esperados pelos estudos científicos e eram esperados muito à frente, com aquecimento muito maior – afirma a porta-voz do Greenpeace Brasil, Camila Jardim.
Conforme ela, a leitura do movimento ambientalista internacional é de entender que buscar a meta dos 2ºC até 2050 já não é mais possível. O mundo precisa fazer o possível para chegar a no máximo 1,5ºC.
– Apontamos como solução para conseguir isso um acordo global pela eliminação progressiva dos combustíveis fósseis até 2050, com metas claras para todos os países. Esse acordo global precisa ser liderado e financiado pelos países desenvolvidos – destaca.
O Brasil tentará levar uma boa notícia a Dubai. O desmatamento caiu 22% em 2023, ficando abaixo de 10 mil quilômetros quadrados pela primeira vez desde 2018, segundo o programa Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A taxa (9.001 quilômetros quadrados) rompeu um padrão estabelecido no governo de Jair Bolsonaro. Mas ainda está longe da mínima histórica, de 4,6 mil quilômetros quadrados em 2012 (no mandato de Dilma Rousseff). Os números, entretanto, foram divulgados em meio a uma seca histórica na Amazônia, que fez rios virarem desertos. O desmatamento corre solto no Cerrado, o segundo maior bioma nacional e, hoje, o mais ameaçado.
Como em todas as COP, por ser o guardião da floresta Amazônica, o Brasil chega como protagonista. No ano passado, Lula fez sua primeira viagem internacional, ainda como presidente eleito, a Sharm el-Sheikh para participar da conferência. Lá, anunciou a intenção de trazer para o Brasil a COP30.
Neste ano, quando irá pela primeira vez no novo mandato, buscará apresentar, entre outras iniciativas, um plano de transformar pastagens degradadas em lavouras. O modelo desenhado é que produtores interessados em comprar ou arrendar terras usadas para pecuária bovina em baixa produtividade tenham acesso a financiamento com juro baixo em troca de melhora e investimentos para produção de alimentos.
Não será, contudo, um passeio no deserto. Lula deve ser cobrado por sua intenção de levar adiante a possibilidade de explorar combustíveis fósseis na chamada Margem Equatorial, que abrange a Bacia da Foz do Amazonas. A intenção é vista como uma contradição por ambientalistas, que avaliam que, ao mesmo tempo em que o presidente defende, em fóruns internacionais, a transição energética, aposta em pesquisas sobre petróleo e – pior – em um local sensível para o ambiente.
– A gente olha para o governo Lula e vê uma certa disputa entre setores ambientalistas, que alcançaram 22% de redução de desmatamento na Amazônia, que querem lançar um plano de transformação ecológica, que renovaram as NDCs (Contribuição Nacionalmente Determinada, espécie de meta de cada país) com base nos padrões anteriores, mas que, por outro lado, falam que a gente ainda pode sonhar com petróleo na foz do Rio Amazonas. Essas contradições podem impactar significativamente a imagem e a reputação do Brasil como potência verde que o nosso país tenta se lançar – diz Camila, do Greenpeace.
Por falar em petróleo, a própria realização da COP28 em Dubai é controversa. Os Emirados Árabes Unidos são um dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo. E o CEO da empresa petrolífera estatal, Sultan Al-Jaber, é também o presidente das negociações. É como nomear o presidente de uma empresa de cigarros para supervisionar uma conferência sobre a cura do câncer, dizem ambientalistas.
Em sua defesa, Al-Jaber argumenta que está excepcionalmente bem colocado para pressionar a indústria do petróleo e do gás a tomar medidas mitigadoras de impactos ambientais. Afirma também que, como presidente da empresa de energias renováveis Masdar, também coordenou a expansão de tecnologias limpas, como a eólica e a solar.
Na metáfora do mundo como um condomínio, Al-Jaber seria o síndico. Como se vê, polêmicas não irão faltar entre vizinhos na reunião do “edifício mundo”.