Com a experiência de quem atuou por 31 anos como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello pontua que a fala do presidente Lula em defesa do sigilo dos votos da Corte foi um "arroubo de retórica".
Na semana passada, Lula afirmou que "a sociedade não tem que saber como vota um ministro da Suprema Corte. A fala veio após ministros como Alexandre de Moraes serem alvos de ataques e de Cristiano Zanin, indicado pelo atual presidente, ser criticado na esquerda por dar votos contrários às ideias desse grupo político.
Em entrevista ao programa "Gaúcha Faixa Especial", da Rádio Gaúcha, na noite de domingo (10), Mello, que se aposentou da Casa em 2021, defendeu a transparência nas decisões, "mola mestra da administração pública".
Na conversa, Mello, que foi indicado pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, do qual é primo, comentou também sobre as críticas à suposta politização da Corte, a indicação e as primeiras decisões de Zanin e as ações de Moraes.
A seguir, os principais trechos.
Produção: Luiza Schirmer
O que o senhor achou dessa declaração do presidente Lula de que os votos do Supremo, dos ministros do Supremo, não devem ser conhecidos, mas apenas o resultado?
Em primeiro lugar, contraria a Constituição Federal. Porque a mola mestra da administração pública, no âmbito do judiciário, a publicidade. A publicidade é que faz com que, atuando os veículos de comunicação, a sociedade em geral seja informada. E tanto o agente político como o agente público, ele presta contas ao contribuinte. Portanto, o voto deve ser aberto. Por isso mesmo que a cadeira ocupada no Supremo é vitalícia, para dar segurança àquele que a ocupa quanto à permanência no cargo. E eu creio que é o melhor sistema, é o sistema testado. Não podemos tomar de empréstimo o que ocorre na Suprema Corte americana. Lá, os juízes se reúnem, ouvem os advogados, e depois deliberam em sessão fechada, que não tem a participação do público. Após a deliberação, então, há divulgação do resultado a que chegou quanto ao conflito de interesses. Mas, no Brasil, em que temos uma democracia que passo a passo está sendo fortalecida, o sistema constitucional é diferente. E aí temos a submissão da administração pública-gênero, como um grande todo, à publicidade, à transparência maior. Agora, eu sempre disse, quando estava na bancada, que se deve guardar uma autocontenção. E, se de alguma forma está havendo manifestação pública, quanto a este ou àquele modo de entender a celeuma, o conflito de interesses, evidentemente o componente do Supremo tem que rever as posições. E aí evoluir buscando o melhor em termos de prevalência da ordem jurídica.
O presidente Lula se equivocou ao dizer que o voto deve ser sigiloso?
Foi um arrobo de retórica. Não acredito que ele tenha ficado incomodado com a cobrança que houve quanto à posição do ministro (Cristiano) Zanin em relação à descriminalização do uso do tóxico e também quanto à criação de um tipo penal. Eu cheguei mesmo a dizer que, se lá estivesse ainda, como integrante do colegiado, e eu participei de colegiados julgadores durante 42 anos, 31 deles no Supremo, eu votaria da mesma forma. Agora, claro que a esquerda não gostou da posição do ministro Zanin, mas ele só deve obediência à compreensão que faça sobre a matéria submetida a apreciação dele.
Com relação às críticas sobre o papel da TV Justiça, o senhor acha que a existência da TV e a transparência que se dá aos julgamentos, aos votos dos ministros, isso acabou ampliando essa pressão sobre o Supremo?
Não. O Supremo evidentemente esteve nos últimos tempos na vitrine e, estando na vitrine, o estilingue, às vezes funciona. A TV Justiça aproximou o Supremo, aproximou o Judiciário, os agentes que atuam no âmbito do direito, da sociedade, e a sociedade em si do Judiciário. A TV Justiça foi criada na minha gestão em 2002. Até costumo brincar, com o jargão futebolístico, que bati o corner, porque o projeto de criação saiu do meu gabinete na presidência em 2002 e acabei, em uma visão democrática e republicana do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por sancionar a lei de criação da TV Justiça, que é um fato inafastável em termos de aperfeiçoamento em si da sociedade na busca de dias melhores para essa sofrida República que é a brasileira.
Há muitos questionamentos sobre o sistema de escolha do ministro da Suprema Corte, cuja indicação é do presidente da República e depois homologada pelo Senado. O senhor acredita que seria um momento de uma rediscussão desse sistema ou a criação de um limite ao mandato dos ministros?
O cargo em si deve ser vitalício. Não deve estar submetido ao fator tempo, a não ser quanto à expulsória. Eu, por exemplo, levei o cartão vermelho quando completei 75 anos. Com o sentimento do dever cumprido, eu vim pra casa, não estou digladiando com os senhores advogados, mas estou atuando no campo dos pareceres. O sistema está testado, o presidente da República tem a escolha e o nome é sabatinado no Senado. Os senadores aprovam o nome ou não. Uma vez aprovado, tem-se à posse o exercício em si da judicatura.
A autocontenção precisa haver, e evidentemente os integrantes do Supremo devem compreender a envergadura da cadeira
O senhor falou que o Supremo, por vezes, é alvo do estilingue. Muitas pessoas criticam a Corte por supostamente estar submissa ao ministro Alexandre de Moraes. Há excesso de protagonismo?
Inclusive no governo do presidente Michel Temer eu me pronunciei a favor da escolha do ministro Alexandre de Moraes. Porque ele tinha sido do Ministério Público, foi secretário de Segurança Pública do prefeito (Gilberto) Kassab e do governador Geraldo Alckmin e ministro da Justiça. A escolha, a meu ver, recairia, como realmente recaiu, nele. Agora, claro que os poderes da República são harmônicos, independentes, e cada qual deve atuar na área que lhe está reservada pela própria Constituição Federal. Isso é muito importante. A autocontenção precisa haver, e evidentemente os integrantes do Supremo devem compreender a envergadura da cadeira e atuar prestando contas à sociedade em geral.
Há excesso de protagonismo ou não na sua avaliação?
Eu, na bancada, cansei de dizer que precisávamos realmente observar a autocontenção. Portanto, na bancada, eu admiti que o Supremo estaria avançando em demasia. Ele tem de atuar, e aí eu cheguei até a falar que tinha saudade da velha guarda do Supremo, que eu encontrei em 1990. Ele (o STF) precisa atuar segundo as balizas constitucionais, não invadindo seara que seja do Executivo, nem seara que seja do Legislativo.
No segundo turno da eleição passada, o senhor abriu o voto para o então presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro. O fato de ele ter demorado para reconhecer a derrota e tudo o que se viu após o pleito faria o senhor mudar a opinião que expressara naquele momento?
Em 2017, fechei um seminário de verão na Universidade de Coimbra, em Portugal, e tive de discorrer sobre a tendência de se eleger populistas de direitas. Falei sobre o (Donald) Trump, falei sobre a Polônia, a Hungria, e disse que temia pelo Brasil eleger o ex-presidente da República, o (então) deputado Jair Bolsonaro, que fizera a vida dele batendo em minorias. Foi a minha posição antes dele ser eleito. Agora, quando surgiu a polarização, eu fiz publicar, inclusive, em um jornal de Brasília, o Correio Braziliense, um artigo explicando por que votava em Bolsonaro, e disse que, como o ex-juiz, não poderia votar em alguém que fora presidente durante oito anos, dera as cartas durante seis, com a presidente Dilma, e que tinha sido condenado pela Justiça por corrupção e também lavagem de dinheiro. Como o ex-juiz, jamais poderia sufragar o nome dele. Agora, reconheço que no passado, quando ele surgiu pela primeira vez candidato, eu votei nele (Lula), visando uma alternância maior no país e, portanto, um olhar mais acurado para as desigualdades sociais que tanto nos envergonham.
Voltando à atual estrutura do Supremo, muito se fala sobre a necessidade de haver mais mulheres e negros, sendo uma Suprema Corte mais representativa da sociedade brasileira. Como o senhor avalia a composição da atual Suprema Corte?
A primeira juíza nomeada para o Supremo foi a ministra Ellen Gracie, que foi inclusive presidente aí no RS do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Posteriormente, tivemos a nomeação não só da ministra Rosa Weber pela presidente Dilma, como também da ministra Cármen Lúcia. Temos grandes nomes no campo feminino que são gabaritados para chegar ao Supremo. Não imagino que o presidente Lula, uma vez vagando uma cadeira que até então estará ocupada até a expulsória pela ministra Rosa Weber, ele venha a escolher um candidato homem, deixando uma única mulher (na Casa). Bo colegiado nós temos um somatório de forças distintas e a participação feminina é muito importante, gera sensibilidade maior do colegiado julgador.
Dada sua experiência como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como o senhor avalia o processo que tornou o ex-presidente Bolsonaro inelegível?
Não conheço o processo em si, porque chegaram a inelegibilidade, e não posso fazer um juízo a respeito sem ter os fatos à mesa e examiná-los para, então, concluir desta ou daquela forma. Agora é a organicidade em si do Direito e ela precisa ser observada.
No caso da indicação do ministro Zanin e, na sequência, a partir da aposentadoria da ministra Rosa Weber, os demais integrantes da Corte são consultados? O senhor chegou a ser ouvido pelo presidente Lula? Isso acontece?
Não, isso não acontece, geralmente o presidente da República escolhe dentro do círculo de relação dele uma pessoa na qual ele confia. O nome, sabemos que aí é um ato complexo, é submetido ao Senado, então se verifica a nomeação em si. Eu, por exemplo, era do Ministério Público do Trabalho, integrei o Tribunal Regional do Trabalho da 1 Região, Rio de Janeiro, e fui ministro chegando à Corregedoria Geral, não cheguei à presidência porque não houve tempo, na alternância que sempre observamos. Quando fui escolhido (para o STF), diziam muito que o fora por um primo (o então presidente Fernando Collor de Mello). Ele é meu primo, eu não sou primo dele, porque infelizmente ele nasceu depois de mim. Esquecia-se a minha trajetória em ser como julgador, mas isso passou e, posteriormente, a sociedade, ante a publicidade dos julgamentos, ela chegou à conclusão de que eu busquei cumprir com o dever de julgador e é assim que funciona o nosso sistema.
O senhor participou como presidente do TSE da informatização do processo eleitoral brasileiro. Como avaliou as críticas às urnas eletrônicas?
A urna eletrônica não foi criada por mim, mas pelo meu antecessor, ministro Carlos Veloso, mas eu presidi as primeiras eleições informatizadas. De lá para cá, não tivemos uma impugnação séria procedente quanto a prevalência da vontade do eleitor. É um sistema que eu posso dizer aos brasileiros em geral com pureza da alma: é um sistema confiável.