Quando se lida com o Kremlin, não há coincidências. E, convenhamos, elas são muitas no episódio da queda do avião Embraer, de fabricação brasileira, no qual estaria Yevgeny Prigozhin, o líder do grupo Wagner, agremiação de mercenários, nesta quarta-feira (23).
Coincidência número 1 - A data. O incidente com o avião, que teria levado à morte o comandante do Wagner, ocorre em 23 de agosto, exatamente dois meses depois do levante organizado pelo grupo contra o regime de Vladimir Putin. Em junho, nesse mesmo dia, Prigozhin veio a público acusar o Ministério da Defesa russo de ter atacado um acampamento dos mercenários e matado vários deles. Por isso, iniciou uma revolta, a maior rebelião da história contra o poder de Putin, marchando em direção a Moscou.
Coincidência 2 - Os passageiros. No avião "acidentado", não só Prigozhin teria morrido. Mas também seu número 2, Dmitri Utkin, o fundador do Wagner. Ex-agente do servido de inteligência russo, ele criou o grupo de mercenários e participou de missões na Ucrânia ocupada, particularmente na região do Donbass. Era a personificação do Wagner.
Coincidência 3 - O histórico de Putin. É conhecida a forma como o presidente russo costuma lidar com desafetos, em especial opositores políticos. A lista de envenenados pelo FSB, o serviço de inteligência sucessor da KGB, é longa, e seus tentáculos alcançam inclusive países da Europa Ocidental - adversários do regime já foram envenenados em Londres. Eliminar inimigos é uma forma de não deixar impune quem desafia Putin. O método mais comum é por envenenamento, mas não são incomuns quedas propositais de aeronaves ou explosões de veículos. Aliás, a maneira como o avião no qual estaria Prigozhin despenca do céu, na vertical, em espiral, é típica de um aparelho atingido por um artefato, como um míssil, ou alvo de detonações internas.
Coincidência 4 - Uma mensagem no Telegram. No Grey Zone, um canal na rede de pessoas próximas a Prigozhin, circulou a seguinte mensagem: "O chefe do grupo Wagner, herói da Rússia, um verdadeiro patriota de sua pátria, Yevgueni Viktoróvich Prigozhin, morreu como resultado das ações dos traidores da Rússia. Mas inclusive, no inferno, será o melhor. Glória à Rússia!". O grupo acusa o Ministério da Defesa, comandado por Serguei Shoigú, declarado inimigo de Prigozhin, de ter derrubado a aeronave.
São apenas coincidências? Talvez. Mas, no caso de alguém que ousou peitar Putin (e depois recuou), essas hipóteses não podem ser tratadas apenas como teoria da conspiração. Aliás, a queda do avião acrescenta uma dose de mistério a uma história que já parecia uma série de ficcção: o suposto levante do Wagner e de Prigozhin contra o governo russo. Primeiro, o levante. Depois, o recuo e o exílio do líder do Wagner em Belarus. Na sequência, um suposto perdão de Putin. E ainda um encontro entre o presidente e Prigozhin, cinco dias depois do motim. Justamente com o homem ao qual Putin acusara, dias antes, de traição e de ter lhe dado uma facada pelas costas.
Desde a rebelião, Prigozhin só havia aparecido duas vezes em público: em 19 de julho, em Belarus, e em 27 daquele mês, em São Petersburgo. Nunca mais se falou sobre questionar o poder de Putin. Nunca mais se soube exatamente o que ocorreu naqueles dias 23 e 24 de junho. E, dada a névoa que costuma pairar sobre as ações do Kremlin, sob a mão pesada do novo czar, talvez nunca se saiba o que realmente ocorreu com o avião de Prigozhin.