Uma das personalidades acadêmicas russas mais conhecidas no Exterior, a professora Olga Volosyuk percorre boa parte do Ocidente abordando o ponto de vista russo sobre a geopolítica. Em maio, ela e o colega Dmitry Rozental estiveram em Porto Alegre, onde palestraram na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A iniciativa de trazer os especialistas russos para o Brasil é da Fundação Alexander Gorchakov de Diplomacia Pública, uma instituição renomada na Rússia, dedicada à promoção de estudos e pesquisas em relações internacionais e diplomacia. Nesta entrevista, a diretora da Escola de Estudos Internacionais Regionais e professora da Faculdade de Economia Mundial e Assuntos Internacionais da Higher School of Economics, com sede em Moscou, fala sobre a guerra na Ucrânia, a retomada do protagonismo do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e as relações entre os governos Vladimir Putin e Lula.
O Brics parece vulnerável a ideologias políticas, dependendo dos partidos no poder. Como superar esses testes internos?
O surgimento do Brics, em 2006, foi recebido com ceticismo por analistas e especialistas tanto no mundo ocidental quanto nos próprios países membros. Essa visão foi facilitada por uma série de fatores aparentemente intransponíveis, diferenças e contradições entre os fundadores: afastamento geográfico, reivindicações territoriais, incompatibilidade de sistemas políticos e jurídicos, falta de semelhança ideológica e, finalmente, diferenças culturais significativas. No entanto, em 17 anos, o Brics vem demonstrando aumento constante na coordenação política e na interação econômica. Quando você fala em “ideologias políticas diferentes dependendo dos partidos no poder”, você quer dizer, pelo que entendi, em primeiro lugar, o Brasil. No início, os governos brasileiros que foram muito ativos na promoção da ideia do Brics eram majoritariamente de esquerda. Quando o presidente Bolsonaro chegou ao poder, especialistas argumentaram que a participação do Brasil no grupo estava ameaçada. Ocorreu exatamente o oposto. A presidência brasileira foi muito eficiente na preparação para a cúpula de 2019. Nesse sentido, a postura de Bolsonaro em relação ao Brics tornou-se um símbolo de que o mundo está sendo reiniciado das formas mais inesperadas. Que tipo de Estado é a Rússia: de direita, de esquerda ou combina as duas ideologias? E a China, como caracterizar em uma palavra esta potência do século 21, insuperável em PIB no mundo? E a Índia, onde em 2014 não apenas o partido governante e o gabinete mudaram, mas uma era aparentemente mudou quando Narendra Modi chegou ao poder? Mesmo com essas mudanças, o Brics continua existindo e expande suas atividades e iniciativas.
Por isso, o interesse de novos países por ingressar no grupo?
Qual melhor prova de sua vitalidade do que o número de países que manifestaram interesse em ingressar no grupo? O Brics é percebido como um dos pilares de uma ordem mundial multipolar, que reflete os interesses dos países da “maioria mundial”. Tem um enorme potencial para desenvolver cooperação nas mais diversas áreas. Isso significa que o Brics não está vulnerável a ideologias políticas ou dependente de partidos no poder.
Qual é a sua opinião sobre uma moeda comum para o Brics, como alternativa ao dólar, defendida por Lula?
Os países do Brics há muito tempo adotam medidas para aumentar o número de transações em moedas nacionais. O uso do dólar pelos Estados Unidos como arma para pressionar outros Estados apenas confirma a necessidade desses esforços. Nesse contexto, a proposta do presidente brasileiro de pensar na criação de uma moeda única do Brics foi muito relevante. Deixe-me lembrar que na reunião dos líderes dos “cinco”, em junho de 2022, o presidente russo, Vladimir Putin, fez declarações em favor do estabelecimento de uma moeda de reserva internacional com base nas moedas dos Estados do Brics. A ministra de Negócios Estrangeiros da África do Sul, Naledi Pandor, se manifestou recentemente na mesma linha. Mas existe uma grande distância entre uma ideia e sua implementação.
O presidente Lula enfatizou, com razão, que a Ucrânia também é responsável por esse conflito. Mas não só a Ucrânia
A senhora acredita em uma possível paz na crise da Ucrânia?
Como as autoridades russas, incluindo o presidente Vladimir Putin, afirmaram em várias ocasiões, o lado russo está aberto à ideia de negociar uma solução pacífica para o conflito ucraniano. No entanto, neste momento, não há pré-requisitos para isso, uma vez que o lado ucraniano não demonstra desejo ou disposição para negociar. Além disso, há proibição de negociações desse tipo na Ucrânia. Parece que isso se deve à política dos patrocinadores de Kiev, que continuam a apostar em infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. Se o Ocidente quiser encerrar o conflito pacificamente, deve parar de inundar a Ucrânia com armas e enviar mercenários àquele país. As condições russas para um acordo de paz são simples: devem levar em conta as realidades geopolíticas existentes, excluir quaisquer ameaças à segurança da Rússia e garantir a proteção da população de língua russa na Ucrânia.
No passado, Lula disse que a Ucrânia, assim como a Rússia, é responsável pela crise. Qual é a sua opinião?
O presidente Lula enfatizou, com razão, que a Ucrânia também é responsável por esse conflito. Mas não só a Ucrânia: EUA e Otan (aliança militar ocidental) devem compartilhar a responsabilidade por essa crise com Kiev. Em 2015, na cúpula de Minsk, os líderes de Alemanha, França, Ucrânia e Rússia assinaram acordos para a solução do conflito armado na Ucrânia que, posteriormente, foram aprovados por uma resolução especial do Conselho de Segurança da ONU. Em 6 de fevereiro de 2015, a então chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês à época, François Hollande, repentinamente se encontraram no Kremlin para persuadir o presidente Putin a influenciar os voluntários do Donbass (região ucraniana com movimentação separatista) a interromper as atividades de combate e sentar-se à mesa de negociações – sob suas garantias.
Como chegamos à situação atual?
Todos esses anos a Rússia buscou a implementação dos Acordos de Minsk por Kiev. Todos esses anos os líderes da Alemanha e da França não fizeram nada enquanto a Ucrânia, sob vários pretextos, se recusou a implementar o Acordo, mas aumentou abertamente seus armamentos ao redor do Donbass. O Ocidente seguiu uma política de fornecer enormes quantidades de armas e munições para a Ucrânia, enquanto fechava os olhos para o fato de que Kiev os utilizava para bombardear civis e infraestrutura civil nas Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk (outras regiões ucranianas com movimentação separatista). Ao colocar sistematicamente aquele país contra seus próprios cidadãos, contra a Rússia, trazendo a infraestrutura da Otan para mais perto de nossas fronteiras, negligenciando nossas preocupações de segurança e iniciativas de paz e violando os direitos da população de língua russa na Ucrânia, eles estavam sistematicamente criando condições para um confronto militar. Em dezembro de 2022, Angela Merkel admitiu em entrevista ao (jornal alemão) Die Zeit que, na verdade, para ela, os Acordos de Minsk não eram uma tentativa de resolver o conflito, mas sim de garantir tempo para que Kiev se militarizasse. Agora entendemos que confiar em suas garantias foi um erro da Rússia. Em dezembro de 2021, o presidente Putin fez uma declaração pública de que a expansão da Otan, o armamento da Ucrânia, o surgimento de laboratórios biológicos no território da Ucrânia sob o controle dos Estados Unidos e quaisquer tentativas da Ucrânia de adquirir armas nucleares – o que foi exigido por Zelensky – constituiriam “linhas vermelhas” nas relações entre a Rússia e o Ocidente. Suas palavras não foram ouvidas. A operação militar especial que a Rússia lançou em fevereiro de 2022 é uma medida de execução extrema para proteger não só os interesses nacionais, mas também a própria existência da Rússia.
Qualquer contribuição real para um acordo pacífico só pode ser feita se as autoridades ucranianas estiverem convencidas a interromper as hostilidades
A senhora acredita que o Brasil pode, de fato, ser um mediador entre Rússia e Ucrânia?
Congratulamos os esforços brasileiros e estamos dispostos a colaborar com os países parceiros para garantir a paz e a estabilidade. O presidente Lula falou às autoridades russas sobre sua iniciativa de paz, que propõe a criação de um “clube da paz”, formado por países que não estão envolvidos no conflito para mediar as negociações e recomendar soluções. O presidente do Brasil vislumbrou um papel fundamental não apenas para seu país, mas também para a China e a Indonésia. O conselheiro para Assuntos Internacionais do presidente Lula, Celso Amorim, veio à Rússia em março para tratar do assunto e foi recebido pelo presidente Putin. Em abril, o chanceler russo, Sergei Lavrov, esteve no Brasil para se encontrar com seu homólogo Mauro Vieira e também foi recebido pelo presidente Lula. Recentemente, uma missão composta por países africanos liderados pelo Egito e pela África do Sul foi recebida pelo presidente Putin no Kremlin. O enviado chinês para assuntos euro-asiáticos, Li Hui, também se envolveu em uma missão significativa, que incluiu vários destinos, incluindo Moscou. O papa Francisco também enviou um emissário à capital russa, Matteo Zuppi, para discutir questões humanitárias e a crise ucraniana. Observe que, ao contrário das capitais do Ocidente, Moscou abriu suas portas para esses emissários e convocou reuniões nos níveis mais altos.
Neste contexto, Em que termos a Rússia aceitaria a paz?
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, declarou em 26 de junho que “sempre enfatizamos e nunca mudamos a posição de que estamos prontos para considerar quaisquer propostas de natureza séria”. Portanto, sempre que parceiros como o Brasil, que estão dispostos a considerar os interesses russos em um possível plano de paz, quiserem discutir a crise ucraniana, seus interlocutores em Moscou serão receptivos. No entanto, qualquer contribuição real para um acordo pacífico só pode ser feita se as autoridades ucranianas estiverem convencidas a interromper as hostilidades, a deixar de ser uma fonte de ameaças à segurança da Rússia e sentar-se à mesa de negociações. Além disso, como já mencionei, o Ocidente deve parar de inundar a Ucrânia com armas e mercenários.
Como a senhora imagina o futuro da Rússia em termos de relações internacionais quando o conflito terminar?
A atual crise nas relações entre a Rússia e o Ocidente, aparentemente, é irreversível, e o aumento dos laços com os países da “maioria mundial” parece não ter alternativa. Nosso futuro, na minha opinião, estaria ligado à solução das seguintes tarefas: primeiro, a formação de centros de poder com alto perfil político, relativamente independentes dos Estados Unidos e de seus aliados. Segundo: a criação de oportunidades confiáveis de modernização por meio da interação com o mundo não ocidental. Se a Rússia conseguir construir um modelo econômico viável que não esteja fundamentalmente conectado às instituições financeiras e cadeias de suprimentos ocidentais, abrirá um precedente muito significativo. Anteriormente, tais precedentes foram associados a países que são soberbamente chamados de “Estados párias”. A Coreia do Norte ou o Irã conseguiram manter sua soberania e construir modelos econômicos funcionais. O surgimento de tal modelo em uma potência grande e com bons recursos mudará significativamente o estado atual das coisas. Além disso, a China está gradualmente construindo um sistema econômico resistente ao contorno externo, mantendo laços globais benéficos e não forçando um confronto com os Estados Unidos. Terceiro: garantir a segurança. A orientação euro-atlântica continuará sendo uma ameaça político-militar direta para a Rússia. Nas fronteiras ocidentais, estamos lidando com um bloco hostil poderoso, tecnologicamente avançado e consolidado. Sua força militar crescerá e se concentrará na direção da Rússia. A situação militar na Ucrânia determinará a dinâmica futura das ameaças.
A senhora acredita que um confronto militar direto entre Rússia e Otan é possível?
As perspectivas de confronto aberto entre Rússia e Otan levam a um cenário no qual o fator militar, e não o diplomático, desempenha papel principal. Mas isso não significa necessariamente um corte de todos todos os laços entre a Rússia e o Ocidente, a menos que isso se torne a política de Estado da Otan e da União Europeia. Os laços da Rússia com seus vizinhos ocidentais vêm se intensificado há séculos. Mesmo a poderosa crise que estamos testemunhando hoje não pode cortá-los da noite para o dia. Manter os laços culturais, humanitários e, finalmente, familiares diante do confronto político é uma tarefa muito mais difícil, mas não menos importante, embora, francamente, a cada dia que a crise continua, milhares e milhares dos fios que costumavam nos unir estão se rompendo.
A invasão da Ucrânia foi um erro estratégico da Rússia?
Se com essas palavras você está se referindo à operação militar especial, então não. Não foi um erro do lado russo, mas um passo inevitável nas condições em que os países ocidentais começaram a usar a Ucrânia como ferramenta para ameaçar a segurança da Rússia, dos cidadãos russos e da população de língua russa residente na Ucrânia. Nesse contexto, é evidente que a Rússia tinha o direito de tomar todas as medidas necessárias para responder às ameaças a sua segurança nacional, prevenir qualquer agressão e proteger sua população civil. Se houvesse outra maneira de evitar a ação militar, acredito que essa opção teria sido usada. Mas a abordagem destrutiva e conflituosa do Ocidente e de seu representante ucraniano tornou isso impossível.
O que o governo russo espera do relacionamento com o Brasil?
Durante as eleições brasileiras de 2022, o governo russo fez uma série de declarações reconhecendo que Moscou mantinha boas relações com os dois candidatos, Jair Bolsonaro e Lula. O presidente Putin deixou isso claro durante um discurso na 19ª Sessão Anual do Clube de Valdai, afirmando que Moscou não interfere em assuntos internos de outros países e que a Rússia estava disposta a trabalhar com os dois líderes. Essas declarações são comprovadas pela história de nossas relações bilaterais. Uma parceria estratégica entre Brasil e Rússia foi firmada durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, político moderado, identificado com o centro. Durante os dois primeiros mandatos de Lula (de 2003 a 2011), as relações russo-brasileiras foram elevadas a um novo patamar, especialmente no que se refere ao comércio. Além disso, Moscou e Brasília apresentaram notável coordenação em fóruns multilaterais – como OMC, G20 e ONU – durante os primeiros mandatos de Lula.
E no governo de Jair Bolsonaro, como foram as relações?
As relações russo-brasileiras durante a gestão de Bolsonaro também foram muito fortes, notadamente na segunda metade de seu mandato. O chanceler Carlos França visitou Moscou para realizar consultas com nosso ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, em novembro de 2021. Isso resultou no fortalecimento de laços em áreas cruciais, como defesa, energia nuclear e compartilhamento de informações. Em fevereiro de 2022, o próprio Bolsonaro veio a Moscou para uma visita de Estado, durante a qual recebeu calorosas boas-vindas de Putin. A Rússia provou sua capacidade de manter bons laços com líderes que cobrem todo o espectro político do Brasil: Fernando Henrique Cardoso, identificado com o centro; Lula, com a esquerda; e Bolsonaro, com a direita.
E agora, no terceiro mandato de Lula?
Desde o retorno do presidente Lula ao cargo, as relações começaram bem. No primeiro dia da presidência, o líder brasileiro aprovou a retomada dos trabalhos da CAN (Comissão de Alto Nível de Cooperação Russo-Brasileira), presidida pelo vice-presidente brasileiro e pelo primeiro-ministro russo. A cooperação nos usos pacíficos da energia nuclear, fortalecida nos anos de Bolsonaro, também foi mantida pelo governo Lula. Além disso, o presidente brasileiro demonstrou entusiasmo em desenvolver iniciativas importantes sob os auspícios do Brics, como o desenvolvimento de um sistema multilateral de pagamentos. Tais iniciativas estão em sintonia com os interesses da Rússia, que recentemente priorizou as relações com os países do Sul Global e o Brics em seu novo Conceito de Política Externa.