Ainda há poucos livros no Brasil sobre a guerra que assombrou o mundo em 2022 e que, um ano e meio depois, segue sem solução.
As obras por aqui costumam retratar, a quente, o cotidiano dos invadidos, os ucranianos. Poucos se aventuram em relatar o lado dos invasores, os russos, até pela carência de informações que escapam entre as fissuras das muralhas do Kremlin. Análises sobre a política russa são ainda mais raras, também em parte pela antipatia generalizada do Ocidente em relação a Vladimir Putin.
Fosse apenas por esses dois motivos, "Rússia condenada - Primeira guerra mundial com alta tecnologia", do jornalista Luiz Recena Grassi, já seria um livro raro. Mas a obra, lançada pela Irmãos Recena Editora, transfigura-se em literatura de alta qualidade por outro motivos à medida que, a cada página, a experiência do correspondente, que viveu em Moscou entre junho de 1989 e setembro de 1992, aflora por trás das palavras.
Recena nasceu em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, formou-se na primeira turma de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mas desde cedo ganhou o mundo - tem conexões em Brasília, onde passou pela Gazeta Mercantil, O Globo, Jornal de Brasília, Correio Braziliense, Radiobrás, EBN e EBC, trabalhou no México, na antiga União Soviética, na França e em Portugal. Nos dramáticos anos em que passou em Moscou, reportando para jornais do Brasil e de Portugal, ele testemunhou a desintegração de um império, o soviético, e de um modo vida que amalgamou corações e mentes por boa parte do século 20.
Esses relatos da jornada na capital da URSS, são os pontos altos do livro. Estão posicionados ao final de cada crônica sobre a situação atual, acompanhados por ilustrações de Pedro Koshino.
As memórias, fruto das lembranças e das anotações feitas à caneta e papel pelo velho repórter, hoje com 71 anos, permitem ler a obra em dois tempos, que, invariavelmente, se mimetizam. Esses textos especiais levam o título de "O Correio sabe porque viu. Estava lá", em referência ao Correio Braziliense, onde publicava seus despachos à época.
Em certo momento, Recena lembra a visita a Chernobyl, a primeira de jornalistas ao que havia sobrado da usina nuclear três anos e meio depois do acidente. Depois, vai a Kiev, hoje capital em guerra, na ocasião cenário de uma visita do então presidente Fernando Henrique Cardoso à nascente Ucrânia independente.
O cotidiano em transformação se faz presente quando Recena narra os primeiros dias em que o Big Mac chegava às ruínas do império soviético. São episódios e cenários do passado que, em certo sentido, ajudam a compreender o presente.
A coleção de textos sobre o conflito atual é fruto das crônicas publicadas no Blog do Vicente, do jornalista Vicente Nunes no Correio Braziliense a partir de 28 de fevereiro de 2022.
Recena, há quatro anos radicado em Lisboa, começou a escrever sobre a crise no Leste Europeu nos primeiros dias do conflito. A receptividade dos leitores fez com que ele continuasse na lida, que, ao final, acabou por compor um mosaico analítico sobre aspectos militares, políticos, econômicos e sociais da crise. O jornalista capta, por exemplo, uma das características dessa guerra: o uso dos drones no campo de batalha, um diferencial tecnológico. Pelo aspecto geopolítico, destaca a dependência europeia do gás natural russo e traz bastidores sobre um dos poucos suspiros de paz desses dias: o acordo que permitiu a navios graneleiros voltar a zarpar do porto de Odessa, transportando cereais para boa parte do mundo.
Os escritos de Recena trazem pitadas de ironia, erudição, algumas palavras em russo que compõem um olhar perspicaz de quem captou no passado um modo de modus politicus que se manifesta hoje em dia em figuras como o do gélido Serguei Lavrov, ministro das Relações Exteriores de Putin: "Desde séculos, o racional ganha quase todas do emocional, guerra perdida entre corações moles e cabeças frias. Vitória quase permanente do segundo grupo. exceções para música, dança, literatura, teatro. Ganham espaço quando os racionais descansam.", diz no texto intitulado "Moscou não acredita em lágrimas".
E assim, entre frases curtas que dão ritmo à leitura, ele traça um retrato desses tempos: "Na mesa da guerra da Ucrânia não tem comunistas a comandar nenhum lado. Nem socialistas ou qualquer esquerda a assumir protagonismos nas ações de luta ou cessar-fogo. Dois líderes de direita. Um veterano e com memória do passado, outro moderno, oportunista no uso de canais de propaganda para substituir a pequenez bélica. Variações do mesmo tema, a hegemonia da direita. Na Europa e no mundo."
Só é capaz de perceber essas nuances quem testemunha a história ao vivo, o analista que traz na bagagem a memória do repórter.
Recena sabe porque viu. Estava lá.
"A Rússia já entra no jogo condenada"
Em entrevista à coluna, Luiz Recena Grassi conta como seus tempos como correspondente na União Soviética o ajudaram a compreender detalhes da política atual russa.
Por que escrever sobre o lado russo?
Sou capaz de virar uma noite fazendo uma cobertura, mas, quando chega a minha vez, de escrever para mim, eu sempre fui muito preguiçoso (Risos). Já estava aposentado. Teve a pandemia, me encolhi mais ainda. Aí veio a guerra. O jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense, está como correspondente aqui. Rozane de Oliveira (que também é jornalista), minha esposa, disse: "Vamos sacudir essa preguiça". Uma vez por semana, comecei a escrever e a publicar no Blog do Vicente. Deu certo, as pessoas gostaram. Faço um balanço dos fatos e uma projeção.
Os trechos em que você traz as experiências do seu tempo na União Soviética são muito bons. Buscou na memória ou tinha anotações?
Tinha muita coisa anotada, porque é aquela velha história, vontade de, um dia, fazer o livro
Como você avalia Putin? É um político frio mesmo ou o Ocidente o desumaniza?
O Ocidente o desumaniza. O Ocidente odeia a Rússia e os russos há mais de três séculos. Primeiro foi o czarismo, depois, o bolchevismo, e agora a guerra. Atribuo tudo isso a um fundo religioso.
Como assim?
Os bolcheviques se preocuparam em limpar a memória religiosa do povo soviético. E conseguiram. Não limparam tudo, porque quem finalmente sobrou foram os caras com ligações religiosas com a Igreja Ortodoxa. Já são ligações diferentes, políticas. Enquanto isso, o Ocidente perdeu dinheiro, perdeu negócios e pessoas. Mikhail Gorbachev reconstruiu essas pontes. O problema é que a Rússia tem minérios, petróleo e gás. A Rússia tinha terra, né? Os soviéticos tinham muita terra. Uma parte dessa terra a Itália levou, a Ucrânia levou, mas outra parte ficou na Rússia. E a Rússia tem a Sibéria, que ainda é inexplorada. Com muita riqueza. Quando ouve que o Ocidente vai impor novas sanções à Rússia, o governo diz: “Não tem problema, há muito tempo que a gente vive com essas coisas”. E é verdade: os russos sofrem bloqueio de vários tipos há muito tempo. Boa parte das razões que explicam o título do meu livro diz respeito a isso: a Rússia já entra no jogo condenada.
Por quê?
O que estão fazendo agora com o Yevgeni Prigozhin (líder da milícia Wagner, que se levantou contra Putin este ano), por exemplo, já fizeram até czar Nicolau II, que tinha mil problemas com a aristocracia europeia à época. Ele foi derrubado e assassinado. Mas aí, tempo depois, virou santo para a Europa. A Europa fez um processo de canonização dos czares. E ninguém nunca mais falou sobre os problemas que eles tinham, as matanças que faziam contra os camponeses. Com Prigozhin é a mesma coisa. Virou santo também. Prigozhin, agora, é um defensor da democracia. Isso é um absurdo.
O que o senhor espera com o livro?
Pode ser uma ideia meio grandiloquente da minha parte, mas eu gostaria que o livro servisse para aumentar os horizontes do leitor brasileiro. Você sabe a ignorância que temos sobre o mundo, sobre os outros países, sobre a história dos outros. É chocante. Isso depõe contra o Brasil. Acho essa ignorância muito ruim para nós todos, as pessoas, de forma geral, não acompanham os fatos internacionais.
O que o senhor lembra do tempo em Moscou?
Cheguei a ter sete clientes: fui correspondente do Diário de Notícias de Lisboa, entre outros. Então, eu vinha a Portugal e à França a cada três meses, porque tinha conta no Banco do Brasil. A União Soviética, nessa época, ainda não estava no sistema bancário internacional. Notava certa reação de estupor das pessoas ao saberem que eu morava em Moscou: “Como consegue viver lá? Tudo deve ser cinza, tudo é frio”. Eu dizia: “Olha, não é cinza, o inverno já acabou, toda Europa é fria. Lá, é um pouquinho mais”.
O livro busca desmistificar essa visão sobre a Rússia?
Acho que sim. Nesses anos todos, percebi um desconhecimento da Europa, da classe média para baixo, sobre a União Soviética. Vi que o trabalho de propaganda da Guerra Fria tinha sido muito benfeito. Sem dúvida, o trabalho americano foi muito mais eficiente do que o trabalho russo. Até porque os russos eram pobres de ideias e não estavam muito interessados, digamos, em ajudar o povão a se esclarecer. Quando começou a guerra na Ucrânia, fui surpreendido pelo massacre midiático da Europa. Todos os dias, toda hora, todo minuto, era: “O assassino do Putin, o coitadinho do Zelensky, o herói Zelensky”. Disse: “Não pode um ucraniano ser tão herói assim”. Conheço os ucranianos, estive com eles por quatro anos. A Ucrânia dependia da Rússia para tudo. Há um entrelaçamento de mil anos. Faz mais de mil anos que o príncipe Vladimir I unificou as igrejas, unificou as religiões, as vidas todas ali daquela região. É briga de irmão, de primo, não acaba nunca
Muita gente acha que Putin é comunista. É ignorância ou tentativa de se aproveitar da Guerra Fria para pintá-lo como inimigo?
Falam que Putin quer conquistar o mundo, mas hoje você não conquista o mundo. Nem que Putin tivesse chance, ele não quer conquistar o mundo. É muito caro. Enquanto isso, tem a China, que faz uma divulgação de seus feitos todos os dias. Dei umas palestras nos últimos tempos em Brasília e conversei com alguns estudantes. Eu disse: “Vocês têm 20 anos, querem fazer alguma coisa diferente? Preparem-se, treinem-se e viajem para a China, como eu fiz para a URSS”.