Há algo de muito errado em uma sociedade quando a legislação garante a cada atirador desportivo guardar, em casa, 60 armas de fogo — sendo 30 de calibres permitidos e 30 de calibres restritos. Trocando em miúdos, um único brasileiro pode comprar 30 pistolas 9mm e 30 fuzis calibre 7.62, um arsenal maior do que a maioria dos batalhões de polícia militar e delegacias do país.
É isso o que ocorre no Brasil, graças às flexibilizações empreendidas nos anos do governo de Jair Bolsonaro. Não estou defendendo que não se tenha armas em casa. Por decisão pessoal, não as tenho, porque entendo que seu uso deve ser prerrogativa do Estado, que detém o monopólio da força. Mas compreendo os argumentos de quem dispõe delas e respeito quem defende o direito de possuir uma arma para proteção pessoal. Agora, 60?
O Rio Grande do Sul é o Estado com maior número de registros ativos de armamentos por cidadãos comuns, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados nesta quinta-feira (20). São 227,9 mil armas de fogo — e não estão incluídos aqui registros de servidores públicos que têm porte de arma por prerrogativa de função, bem como os guardas portuários e Receita Federal.
Não há detalhes na pesquisa sobre os chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) no Estado. Mas, no país, as informações indicam uma corrida às armas no governo Bolsonaro. O número de registros de CACs subiu de 117,5 mil em 2018 para 783,4 mil em 2022.
Durante o mandato do então presidente, foram editadas diversas medidas com o objetivo de facilitar a aquisição de armas e munições — entre elas o decreto que permitiu que um atirador desportivo tenha 60 armas. Ele também liberou acesso às pistolas 9mm, cujo grau de letalidade é impressionante.
Mas não foi só com Bolsonaro. Antes, ainda no governo de Michel Temer, em 2017, houve mudanças aparentemente sutis, mas que facilitaram a vida dos armados: foi permitido, por exemplo, aos CACs que transportassem, entre suas residências e os locais de prática — clubes de tiro ou locais de caça — seus equipamentos municiados e prontos para o uso. Se o fim, no caso, é o esporte ou a caça, para que levar a arma carregada no carro?
O anuário da segurança pública foi divulgado um dia antes do novo decreto do governo federal, que deve restringir ainda mais o acesso às armas. Em 1º de janeiro, o presidente Lula já havia assinado um decreto suspendendo novos registros de armas por parte dos CACs.
A minuta deve ser mais dura: a competência pelo controle de armas passará do Exército para a Polícia Federal, o cidadão comum deve poder ter no máximo três equipamentos, em vez de seis, as vendas deverão ser comunicadas à PF em até 48 horas, e, com relação aos caçadores, em vez de 30 armas, poderão ter uma de uso permitido. Clubes de tiro não poderão mais funcionar 24 horas. Aliás, por que alguém decide praticar tiro de madrugada? Sobre o cidadão cuja legislação permite guardar em casa até 60 armas, esse terá de rever seu arsenal. Serão permitidas, no máximo, 30 (15 delas de uso restrito). Ainda é muito.