Cofundador e editor-chefe do Nexo Jornal, o jornalista Conrado Corsalette se propôs a unir os pontos entre os protestos de junho de 2013 e os ataques na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
Ao longo dos últimos 10 anos, muitos fatos políticos mobilizaram o Brasil - e nem sempre há uma relação entre causa e efeito. O livro "Uma crise chamada Brasil - A quebra da Nova República e a erupção da extrema direita" (Fósforo) é uma oportunidade única não apenas de relembrar um dos momentos mais traumáticos da história do Brasil, mas, sobretudo, de projetar o tipo de país que desejamos.
Leia os principais trechos da entrevista concedida pelo autor à coluna.
Uma das qualidades do livro é encadear os fatos, unir os pontos, o que une e o que separa aquelas manifestações lá de 2013 e o 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Depois dessa extensa pesquisa, o que há em comum?
A primeira coisa a se deixar claro é como funciona o processo político. Existe um meme na internet em que existem várias pecinhas em que você toca na primeira pecinha e essa pecinha vai derrubando outra peça maior e outra peça maior. Então, a brincadeira é: "Eu pedi 20 centavos e acabaram invadindo os prédios dos Três Poderes". O que é uma falácia. Fazer esse cálculo do "Depois disso, portanto, por causa disso" é sempre um grande problema. É um problema porque você não leva em conta uma série de disputas que ocorreram nessa década. A ideia do livro é justamente mostrar o que dessas disputas e como essas disputas exerceram forças para que a gente chegasse a 2018. Por exemplo, um grupo da sociedade diz: 2013 selou o fim do governo do PT". Na verdade, não, porque em 2014 a Dilma Rousseff foi reeleita. Existem outros fatores envolvidos e outras variáveis. Tanto que faço questão no livro de dividi -lo em eixos temáticos. Tenho lá um capítulo sobre contexto internacional que é importante. Junho de 2013 não surge do nada. Surge num grande movimento anti-establishment e de quebra de frustração que aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu na Primavera Árabe, em vários outros lugares do mundo.
Em Madri…
Em Madri, exatamente, com os indignados. Aí eu vou por eixos. Você tem a questão econômica, a questão judicial, que é essencial. A única coisa que eu vejo de ponto em comum é que em 2013, no Brasil, surgiu um sentimento anti-institucional, anti-establishment, anti-partidos tradicionais muito forte, que ainda, em outras matizes, está presente ainda hoje. E alimenta vários grupos, inclusive grupos radicalizados. O que não quer dizer que foi por pedir 20 centavos. Foi que em todo esse processo de 10 anos, esse sentimento anti-establishment ainda prevalece na sociedade.
Você faz uma discussão no teu livro sobre se os protestos nasceram de esquerda e a transmutação em um ideal de direita. Pelo que você apurou junto às fontes, esse fenômeno já estava presente lá atrás, na origem, ou foi mudando com o tempo?
No começo, o que prevalece nas ruas, tanto em Porto Alegre, quanto em Natal, Goiânia, e no início de junho em São Paulo, são os chamados movimentos autonomistas. São movimentos que não têm ligação muito explícita com partidos tradicionais, não têm ligação com sindicatos, apesar de sempre ter ali gente relacionada à política, mas são movimentos que, teoricamente, são extra-institucionais. Essa é uma expressão muito usada: o Marcos Nobre, professor de filosofia e entrevistado no meu livro, ele costuma usar essa expressão. São movimentos extra-institucionais, inicialmente de esquerda, e, depois, por uma série de motivos que trato detalhadamente no livro, essas manifestações extrapolam esse campo político-ideológico, e acrescentam várias outras pessoas. Pesquisas mostram que boa parte de quem estava na rua em 2013 nunca tinha ido num protesto. E também grupos que conviviam, tanto com black blocs como neonazistas, que estavam na rua. Havia grupos que pediam intervenção militar. Em São Paulo, há uma virada que ocorre ema 13 de junho, quando a polícia é extremamente violenta. O humor da imprensa começa a mudar em relação às manifestações. Antes era muito crítico, depois passa a ficar um pouco mais de acordo com o que já acontecia nas redes sociais, que já tinham sacado que aquele era um grande momento histórico. Esses grupos vão crescendo, o número de jovens na rua vai crescendo.
A Lava-Jato veio com essa resposta, que, por muito tempo, foi vista como uma grande avanço no Brasil. Só depois a gente viu que havia ali motivos políticos.
E os políticos não conseguem dar uma resposta aos clamores populares?
Você citou a Lava-Jato e isso é uma conclusão que dá para chegar a partir das entrevistas que a gente fez para o livro. Na verdade, o livro é consequência de um podcast que a gente lançou no ano passado. Ele acaba na eleição e o livro vem até 8 de janeiro de 2023. Fecha um ciclo ali. Os políticos ficaram perdidos com 2013, eles não souberam dar uma resposta adequada, Dilma chegou a falar em um pacto que nunca saiu do papel. Os prefeitos começaram a baixar a passagem de ônibus, quando o preço da tarifa já não era o motivador principal das manifestações. Quem deu a resposta às ruas foi a Lava-Jato. E qual era a resposta? "O problema do Brasil é a corrupção". Essa é uma resposta simplista, é muito pouco complexa, mas que é inteligível. As pessoas associaram o combate à corrupção a: "Agora, pelo menos vamos ter dinheiro para hospital padrão Fifa", que se cobrava nas ruas. Essa resposta vem da Lava Jato, que também não é um ator político institucional, apesar de estar no Ministério Público, em um ambiente institucional, mas eles vêm como essa força. A direita que cresce no Brasil, MBL, também não é ligada aos partidos tradicionais. É óbvio que eles fazem acordos e etc., mas é uma direita extra-institucional. E essa direita extra-institucional se associou e deu vazão à Lava-Jato. A Lava-Jato veio com essa resposta, que, por muito tempo, foi vista como uma grande avanço do Brasil. Só depois a gente viu que havia ali motivos políticos por trás de muita coisa séria que foi revelada, mas também muita coisa direcionada politicamente.
O livro nasceu de um podcast, o "Politiquês", do Nexo, em que você já buscava unir as pontas de acontecimentos políticos e explicar conceitos. Como evolui para o livro?
O podcast "Politiquês" surgiu em 2017, já era governo Michel Temer, e o Brasil estava em ebulição: era "Joesley Day" em um dia, a prisão e a condenação do Lula em outro. No meio de tudo aquilo, para mim ficou claro que era necessário trazer um pouquinho mais de pé no chão para lidar com o conceito. Em vez de tratar só de corrupção, e como se isso fosse uma coisa simplesmente nova, vamos tratar do patrimonialismo brasileiro, então vamos explicar o que é patrimonialismo. Em vez de lidarmos com "fantasmas do comunismo", vamos explicar o que é e o que não é o marxismo. Esse podcast era por temas, e funcionou: ficou no ar por 70 episódios, era semanal. A gente o levou até 2019 e parou. Em 2022, houve a oportunidade de voltar ao Politiquês, e aí a gente o fez um novo formato temporal: tratar da década 2013-2023. Chamei a Malu Delgado e a Beatriz Gatti, duas jornalistas que foram fundamentais para a elaboração do podcast. Junto com elas, fiz 53 entrevistas com fontes diversas: ministros do Supremo, ex-juízes da Lava-Jato, atores que estavam nas ruas em 2013, muitos acadêmicos de diversas áreas. A gente tentou dar um panorama plural, e isso é importante: ali você não vai encontrar só uma maneira de ver o mundo, a gente traz maneiras complementares de ver o mundo. Esse sempre foi o papel do Nexo, jornal onde trabalho, que ajuda a aprofundar, de trazer essas visões complementares, para que o leitor possa construir. É claro que isso não quer dizer que eu não seja assertivo em alguns momentos, porque eu acho que já dá para ser assertivo em alguns momentos, mas a pluralidade ali é o meu centro.
Qual foi o papel, na sua opinião, das redes sociais? Elas foram fundamentais ou não?
Dá para dizer com certeza, isso é quase consensual nas entrevistas que foram feitas para o podcast e depois utilizadas no livro, que as redes sociais são fundamentais para o surgimento do sentimento anti-establishment. Elas trouxeram o ator digital: isso ocorreu nos Estados Unidos, com Ocuppy Wall Street, aconteceu na Espanha com Os Indignados, na Primavera Árabe. Eram pessoas antes alijadas do debate, que passam a fazer parte do debate por conta das redes sociais. E a primeira visão era muito otimista em relação às redes sociais e à internet como um todo. Ela vai dar não só liberdade e incluir pessoas na conversa, como também vai fazer com que as possibilidades de participação política cresçam. Participação inclusive na mobilização de protestos. Isso no mundo inteiro. E no Brasil não foi diferente. O avanço digital está intrinsecamente ligado, inclusive com a estética daquelas manifestações. Afinal, a gente começou a ver aqueles longuíssimos vídeos de transmissão ao vivo, via celular, e isso só foi possível porque tinha o 4G. Sem isso não ia ter aqueles vídeos longuíssimos do Mídia Ninja, que, na época, eram uma nova estética jornalística. Chegaram a ser chamados para o Roda Viva para falar sobre isso. Eram transmissões de horas, uma imagem muitas vezes tosca do ponto de vista que a gente estava acostumado esteticamente a ver na televisão. Mas as pessoas ficavam conectadas. E aí essa própria estética foi sendo incorporada pela mídia tradicional, no geral. Isso traz uma mudança total no jogo. Quem que estava preparado para esse jogo na política? Bom, tinha um deputado que tinha conta no Facebook desde 2012. Chamava -se Jair Bolsonaro. Ele tinha e se estruturou para que a rede digital dele, a persona digital dele, tivesse uma grande influência. Os novos movimentos da direita, o MBL, também atuaram de uma forma muito agressiva nas redes sociais. Aquele cenário em que a gente via com extremo otimismo da utilização das redes e da internet como uma possibilidade de aumento de participação, se transforma, inclusive, na falta de transparência, de como funcionam os algoritmos e no fato de que a gente sabe que discursos virulentos têm mais alcance na internet. A gente se aproxima das pessoas que têm pensamentos mais próximos. Isso vai criando bolhas, situações que transformaram aquele otimismo num extremo pessimismo em que muita gente olha de uma maneira muito ruim para a internet. Não é à toa que está se discutindo a regulação das redes. Eu, particularmente, acho que tem que ser regulada. Não estou dizendo por qual texto. Mas as redes sociais precisam de uma regulação, alguma maneira de você ordenar essa nova arena pública, criar condições para que as coisas possam ser mais democráticas ali dentro. Hoje, não vejo nem com tanto otimismo como lá de trás, porque não somos ingênuos, mas também não acho que é aquela coisa, tipo "o mundo acabou". Acho que a gente tem que olhar para frente e pensar numa regulação que seja adequada, que dê conta da liberdade de expressão, que dê conta, inclusive, dos veículos de comunicação profissionais, que produzem jornalismo. Então, acho que esse é um dos desafios. Mas é um desafio que não vem sozinho. A gente tem um extremo oligopólio das grandes big techs, são cinco que mandam no mundo e isso é um problema também. E a gente tem uma questão de fundo: é necessário começar a investir agora em educação midiática, na escola, dizendo como é funciona a imprensa, as redes, como você consegue detectar notícias falsas, desinformação.
Ao longo do livro, tu fala sobre o debate público. Perdemos um pouco a capacidade de dialogar. É possível recuperarmos essa capacidade?
Um dos capítulos do livro se chama esse diálogo interrompido, que lida justamente com isso. Para isso acontecer, a questão da regulação é importante, para você tirar a predominância do radicalismo. Porque os algoritmos privilegiam radicalismos. Por isso a regulação é importante. Tem que acabar com a lógica de grupo, em que a gente convive em grupos muito fechados, e eles acabam dando vazão. Pessoas que acreditavam que a Terra era plana sempre existiram, O que as redes fazem é juntar essas pessoas. Você consegue falar com o cara que acredita na Terra plana aqui em São Paulo, em Porto Alegre, no Recife. Aí esse pessoal se junta e começa a falar. Bom, aí você começa a dar vazão a maluquices. Agora, como é que se rompe essa lógica de grupo? Para além de toda a questão informacional, acho que é a disposição das pessoas de entrar no debate público. De entrar em uma roda de conversa. De eu começar a conversar com você aqui, disposto a mudar de opinião. Porque se eu não estou disposto a mudar de opinião, não vai haver diálogo. São monólogos intercalados. Se minhas convicções têm base em na minha carreira de 25 anos de jornalista, nas entrevistas que eu, a Malu Delgado e a Beatriz Gatti fizemos, se tem base em documentos que eu li, se novas evidências, baseadas em fatos reais, surgirem, eu estou completamente disposto a mudar minha opinião. E acho que é isso que as pessoas precisam entender. A gente não vai melhorar esse ambiente, a gente não vai melhorar o climão do fim de semana da família, se a gente tiver, primeiro, disposição de ouvir, segundo, disposição de mudar de opinião. Por isso que a educação midiática é importante. A partir de dados e informações que sejam reais, que sejam exequíveis, que a gente consiga distinguir o que é opinião do que é evidência, o que é opinião do que é um fato comprovável. O conceito de pós-verdade, lá em 2016, já falava isso. Quando a biblioteca de Oxford colocou pós-verdade como termo de 2016, era basicamente dizendo que o conceito desse pós-verdade é não é que pós-verdade é basicamente mentira, não é isso. A verdade é uma era em que as convicções pessoais e as opiniões têm mais influência no debate público do que os fatos comprováveis. E é isso que a gente precisa reverter.