O texto em negociação na Câmara dos Deputados para regulamentar as redes sociais no Brasil tem infinitos méritos, uma vez que dispõe de semelhanças com a legislação europeia, o Digital Service Act. Mas guarda um furo que, na gênese, vai na contramão de tudo a que a iniciativa se propõe ao estender a imunidade parlamentar para o ambiente até agora sem lei das plataformas.
O artigo 53 da Constituição garante que deputados e senadores são invioláveis, penal e criminalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. No projeto original, aprovado pelo Senado em 2020, essa disposição não seria transposta para as redes. Mas, ao tramitar pela Câmara, o projeto de lei que tem o deputado Orlando Silva (PC do B-SP) como relator, ganhou esse item - que não apenas nunca mais caiu, como foi se tornando mais robusto a cada rascunho. Na prática, se aprovado como está, parlamentares em mandato ficarão livres da moderação de conteúdos feita pelas plataformas.
Essa proteção é a antítese do que se deseja: maior responsabilidade por quem usa as redes e por quem as administra. E isso só virá com a certeza de punição.
Como se viu na crise da covid-19, no processo eleitoral e no antes, durante e depois dos ataques do dia 8 de janeiro, em Brasília, agentes políticos, entre os quais parlamentares de diferentes matizes, estão entre os que mais propagam desinformação, ataques às instituições, incitação ao ódio e à destruição da democracia.
Diferentemente do que ocorre com uma declaração em plenário ou de uma fala em uma entrevista, uma postagem em rede social tem capacidade muito maior de disseminação instantânea, como um veneno pela corrente sanguínea, impactando milhões de pessoas de forma perene. O estrago é conhecido: durante a pandemia, vimos autoridades públicas incentivando tratamento sem comprovação, questionando eficácia das vacinas e defendendo kit cloroquina.
Silva, que tem se mostrado tão aberto a opiniões para rever seu projeto, afirma-se como intransigente nesse ponto da imunidade nas redes - e, nisso, tem o apoio do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), em uma amostra de corporativismo do Congresso.
Talvez sem esse item o texto sequer fosse adiante, mas estender o manto protetor soa como algo de quem deseja mentir e não ser punido.