Um dos principais defensores da regulamentação de plataformas digitais e integrante do gabinete de transição, o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP) prevê, nos primeiros cem dias do governo Luiz Inácio Lula da Silva, algum tipo de ação para regular as chamadas Big Techs. O tema é visto como de altíssima prioridade no novo mandato.
- Diria que é inescapável que, no próximo período, possamos avançar na regulação para que o Brasil continue sendo uma plataforma de exportação de serviços, para que redes sociais possam ser espaço de conexão e difusão de cultura e informação, de empreendedorismo, e para que possamos aproveitar as maravilhas da internet sem os seus efeitos colaterais, cuja desinformação e discurso de ódio talvez sejam os efeitos colaterais mais perversos - afirmou Silva, em entrevista à coluna.
Além de integrar a transição e cotado para diferentes áreas em ministérios que tratam sobre comunicação e internet, o deputado é relator do Projeto de Lei das Fake News (PL-2630), em tramitação no Congresso. A seguir, os principais trechos da conversa com a coluna na manhã desta segunda-feira (19).
Agora que vocês serão governo, qual modelo defenderão para regulamentação de plataformas digitais? Será o modelo da União Europeia (UE)?
A UE tem uma tradição de regulação forte da atividade econômica, e, inevitavelmente o Brasil sempre acaba observando o que fazem lá. Poderia dar o exemplo da GDPR, o regulamento geral de proteção de dados pessoais da UE, que acabou servindo de inspiração para a Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil (LGPD). Nesse sentido, a aprovação do ato dos mercados digitais e do ato dos serviços digitais, elaborados na UE, são objetos de análise, de reflexão, assim como a regulamentação da inteligência artificial, documento que está em fase de maturação por lá. A UE é inspiração, sim. Por outro lado, o Brasil coopera muito economicamente com os Estados Unidos, que têm outro padrão de regulação. Nos EUA, os aspectos econômicos são centrais. Na UE, os aspectos de direitos humanos têm peso grande. A inspiração deve ser a UE, mas levando em conta as particularidades brasileiras. É necessário topicalizar essa inspiração da UE e levar em conta a experiência dos EUA em função de as big techs, em sua grande maioria, estarem assentadas lá. Segundo porque o Brasil tem uma cooperação econômica muito intensa com os EUA.
O caminho é encontrar um meio termo entre UE e EUA?
Mas não há modelos. A regulação das plataformas digitais é um tema aberto. E o Brasil tem o que dizer. O Marco Civil da Internet é referência internacional. O Comitê Gestor da Internet é uma experiência única no mundo de regulação. O Brasil precisa voltar à posição de vanguarda. Considero muito importante a sinalização dada pelo presidente Lula de que é preciso cooperação internacional para regulamentação das plataformas. Porque é um tema global: a lei deve ser internalizada por cada país, na UE é assim, mas há de se ter um padrão global, e isso vai exigir cooperação de diversos países.
Um dos problemas é que as big techs se definem como empresas de tecnologia, mas também produzem conteúdo. Porém, não têm as mesmas responsabilidades dos veículos de comunicação tradicionais.
Claro. O YouTube transmitiu a Copa do Mundo. É conveniente para as plataformas digitais se dizerem veículos (de informação), mas, ao mesmo tempo afirmarem que não têm responsabilidade com os conteúdos que veiculam. Desse modo, elas se colocam à margem de qualquer regulação. Mas sabemos que as empresas fazem moderação de conteúdo. Há uma polêmica se elas podem ou não fazer (moderação). Entendo que não só podem como devem fazer moderação de conteúdo, para que possamos diminuir disseminação de desinformação. Creio que há um debate que precisa ser melhor desenvolvido sobre até que ponto as plataformas podem ser responsabilizadas pelo conteúdo que produzem. Se você, pura e simplesmente, as responsabiliza, você pode criar um mecanismo de censura privada. As plataformas podem optar pela exclusão generalizada (de conteúdos) para evitar algum tipo de responsabilidade. Eu diria que esse é um tema que merece um pouco mais de cuidado, mas algum nível de responsabilidade por parte das plataformas digitais daquilo que é veiculado por elas é inevitável.
Alguns países passaram a exigir remuneração de conteúdo jornalístico pelas plataformas. Qual a sua opinião?
Sou absolutamente favorável à remuneração de conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais. É lugar comum dizer que contra a desinformação é necessário valorizar a informação. A informação é produzida com técnica, método, pluralismo, checagem de fonte. Em suma, com jornalismo profissional. Esse papo de que não existe jornalismo profissional, de que jornalismo expressa apenas uma versão, esse relativismo da produção da informação, nos leva ao caos. Porque "nada é verdade", se você seguir essa lógica. Eu acredito que é necessário estabelecer protocolos, padrões, compromisso ético de quem produz e difunde informação. Agora, há de se ter fontes confiáveis de informação. E esses conteúdos produzidos, para a defesa da sociedade, devem ser remunerados. Basta observar como tem sido a dinâmica econômica na comunicação. As plataformas digitais ocupam um papel cada vez mais central na publicidade. Não vejo problema, porque há uma eficácia muito grande. A publicidade digital é ancorada no marketing direto, há um conjunto de dados pessoais que são coletados e tratados, que oferecem uma precisão maior no marketing digital. Por isso, ganha muita força e peso. As plataformas digitais compõem marketing e difusão de ciência, conhecimento e cultura. Quem produz essas informações precisa ser remunerado. Não tenho a menor dúvida de que isso é necessário, em defesa do combate à desinformação e do jornalismo profissional. Já houve experiências no mundo que as big techs ameaçaram se retirar de um país, como no caso da Austrália (por causa dessa exigência), mas, ao fim e ao cabo, elas voltaram a manter sua atividade. Estou convencido de que é outro tema inescapável.
Sempre que se fala em regulamentação há o fantasma da censura, dos riscos à liberdade de expressão. Como equalizar?
Liberdade de expressão é direito fundamental, garantido pela Constituição. Nenhuma regulação de plataformas digitais pode ferir a liberdade de expressão porque se estaria ferindo a Constituição. Esse debate sobre regulação e a insinuação de cerceamento à liberdade de expressão aparece quando se fala em moderação de conteúdo publicado nas plataformas digitais. Hoje, a moderação já existe. Mas não há transparência. Quais são os critérios utilizados para moderação de conteúdo? Nós defendemos que haja transparência, inclusive nos algoritmos, como são aplicados para definir o que alcança mais, menos, o que fica, o que sai. Ninguém sabe quais são as regras. É necessário que as plataformas tenham mais transparência na fixação dessas regras. Defendo que haja o devido processo para que o usuário possa contestar a moderação de conteúdo. Hoje, há uma mensagem genérica: "A publicação foi retirada porque feriu nossos termos de uso". Mas quem faz a moderação de conteúdo fala português do Brasil? Não sei. A diversidade que existe na sociedade brasileira está presente nas equipes que fazem a moderação? Não sei. Esses detalhes, idioma e a composição das comissões de moderação, parecem tecnicalidade, mas não são.
É a famosa caixa-preta do algoritmo.
A forma como você lê pode fazer toda a diferença. Defendo que haja transparência nas regras das plataformas para moderação de conteúdo e a garantia de um devido processo para que o usuário possa contestar uma moderação de conteúdo eventualmente realizada. E que, se ele tiver razão, que as empresas possam reparar o dano que produziram a sua liberdade de expressão.
Qual relevância o tema da regulamentação das Big Techs terá no governo Lula?
Fiz parte do grupo de transição que discutiu comunicações. E lá o tema regulação da internet ficou apontado como uma das tarefas dos primeiros cem dias. Outro grupo de trabalho que discutiu comunicação social também apontou a necessidade de regulação das plataformas digitais. E um terceiro GT, que discutiu Justiça e Cidadania, também apontou isso. Aliás, o ministro indicado Flávio Dino já apontou a advogada Stela Aranha como membro de sua equipe para tratar de temas digitais. Diria que é inescapável que, no próximo período, possamos avançar na regulação para que o Brasil continue sendo uma plataforma de exportação de serviços, para que redes sociais possam ser espaço de conexão e difusão de cultura e informação, de empreendedorismo, e para que possamos aproveitar as maravilhas da internet sem os seus efeitos colaterais, cuja desinformação e discurso de ódio talvez sejam os efeitos colaterais mais perversos.
Os serviços de mensagem acabam sendo os mais difíceis de regulamentar.
Eles têm uma dinâmica própria, que merecem um debate específico. Eles próprios têm tomado medidas. Há também uma concorrência muito forte entre eles. O WhatsApp tem o Telegram como forte concorrente. Há passos que o WhatsApp deu à frente no sentido de combater a desinformação, mas que, na minha opinião, tem recuado em função da pressão da concorrência. A própria necessidade de que essas empresas tenham sedes no Brasil será importante para que possamos fazer o diálogo. Acredito que a regulação das plataformas digitais deva ser feita não contra elas, mas conjuntamente com elas, para que haja maior eficiência.
E o PL das fake news deve avançar? O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, que é um candidato forte à reeleição (na Casa), sinalizou que esse é um tema que pretende manter na pauta. Então, imagino que deve seguir e pode ser, inclusive para ganhar tempo, que sirva como ponto de partida, que incorpore sugestões que eventualmente venha do governo.
O senhor está aberto a participar desse debate como integrante do futuro governo?
Fui candidato a deputado federal, fiz 109 mil votos, 20 deputados federais tomarão posse em São Paulo com menos votos do que eu, mas a regra eleitoral, infelizmente, não permitiu que eu fosse eleito. Sou o primeiro suplente da Federação (que reúne partidos que apoiaram a eleição de Lula, entre eles o PCdoB) que, pelo que consta pela imprensa, pode ter dois ou três ministros. O próprio presidente Lula sinalizou que espera que eu o ajude no Congresso Nacional. É lá que acredito que possa dar uma contribuição.