Um dos coordenadores da transição na área da cultura, o historiador Márcio Tavares avalia como "devastador" o atual estado das coisas no setor, com redução de servidores do antigo ministério, paralisia de projetos aprovados pela Lei Rouanet e falta de verbas para custeio dos equipamentos culturais brasileiros.
Atual secretário nacional de Cultura do PT, o gaúcho de Porto Alegre foi diretor do Arquivo Histórico do Estado, do Memorial do Rio Grande do Sul e curador da 10º Bienal do Mercosul, em 2015. Na entrevista a seguir, feita em Brasília, onde mora, ele projeta as urgências para recompor as políticas públicas para a área.
Com os dados do atual governo em mãos, que diagnóstico vocês fazem do setor cultural?
A destruição na área da cultura é total, um quadro impressionante. A estrutura hoje é o equivalente a um terço do que se tinha em 2016. Cada ministério que abrigava a Secretaria da Cultura tomava grande parte de sua estrutura para si. A reconstrução do Ministério da Cultura terá de ser feita em cima da estrutura, que foi reduzida, com inúmeros servidores que saíram por motivo de perseguição. Na proposta orçamentária, só teria R$ 18 milhões para investimento em cultura. Nem as obras dos próprios equipamentos da cultura, como o Edifício Capanema, do Rio, que é sede da Funarte, que precisaria de R$ 20 milhões para obras de restauro, não se tem verba nem para uma simples ação do ministério. Transformaram essa estrutura diminuta em uma área de execução de emendas parlamentares alinhadas com o projeto do governo. A situação na gestão do incentivo fiscal é calamitosa. Há inúmeros projetos que já captaram recursos na iniciativa privada e estão parados. E isso está afetando museus que têm planos anuais aprovados, que podem não ter programação no ano que vem. Não se tem capacidade para manter o custeio de museus que são do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), geridos pelo governo federal. São prédios históricos que estão sendo colocados em risco pela falta de manutenção. Já houve o caso da Cinemateca, que pegou fogo, e com esse nível de descaso, avança-se para isso. A Biblioteca Nacional, que tem um dos principais acervos do mundo, passou os últimos quatro anos sendo destruída. Da Fundação Palmares, todo acervo está encaixotado, em deterioração. A situação é tenebrosa por todos os ângulos.
O que vocês pretendem recomendar como mais urgente?
A gente precisa, nesse momento, garantir orçamento minimamente viável para que o ministério comece a trabalhar no próximo ano. Há duas medidas: garantir os recursos da Lei Paulo Gustavo ainda para esse ano e aprovar a PEC do Bolsa Família, porque ela vai garantir espaço fiscal para iniciar a recuperação pelo menos das proteções das instituições no próximo ano. Além disso, a gente está recomendando a revisão desse decreto da Lei Rouanet, que permita que o mecanismo comece a funcionar com rapidez. Além de tudo, ele foi muito mal gerido nesses últimos anos. O trabalho vai ser de médio e longo prazo. A gente precisa dotar o ministério de capacidade de execução daquilo que é emergencial no próximo ano e de fazer política. Estamos prevendo também, conforme o compromisso de Lula, a realização de uma Conferência Nacional de Cultura no próximo ano. Algumas recomendações não envolvem recursos financeiros, revogação de contratos, restituição de conselhos, reabertura para participação da sociedade civil. A ideia é oferecer ao ministro ou a ministra um piso para que comece o trabalho no dia 1º de janeiro.
Bolsonaro reduziu o montante que artistas podem captar via Lei Rouanet. Quais são as propostas?
A Lei Rouanet sofreu uma operação de desinformação e foi muito mal gerida, inclusive com situações de perseguição direta a proponentes, fazendo com que o Estado operasse com uma lógica ideológica. A gente quer desideologizar esse âmbito, fazer com que a lei funcione com os padrões mais altos de segurança jurídica, diligência, transparência. Estamos propondo um decreto que substitua o atual, que inviabiliza a produção cultural, através da Lei Rouanet. Queremos recomendar a restituição do Conselho de Incentivo Fiscal, que foi revogado pelo atual governo para permitir que tudo na Lei Rouanet fosse determinado por um canetaço de um gestor, sem participação da sociedade civil. Além de ter um passivo enorme de projetos esperando para serem avaliados simplesmente pelo gosto da gestão. Nossa ideia é fazer um despacho geral com relação a esses projetos parados, dar provimento ao que precisa, fazer isso andar. E estabelecer um decreto que ofereça segurança jurídica tanto para as empresas, que são as que aportam incentivo fiscal quanto aos produtores culturais, que estão propondo seus projetos, para que possam voltar a usar esse mecanismo com tranquilidade.
E com relação às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2?
Com relação à Lei Paulo Gustavo, estamos trabalhando para garantir o recurso ainda em 2022, para que a gente consiga manter esses recursos e executar no começo de 2023. Ela é muito importante, são recursos que a gente conseguiu salvar do Fundo Nacional de Cultura, que a gente não pode perder. Vai ser a maior transferência de recursos da União para Estados e municípios da História. Para que isso aconteça, estamos trabalhando para garantir esse orçamento ainda agora, que a gente consiga estender o teto de gastos para outras iniciativas e para a Lei Aldir Blanc 2. Junto a isso, esperamos ter um espaço para reiniciar políticas importantes para o governo, como proteção dos museus, do patrimônio histórico, o Cultura Viva, a política para a Funarte. Precisamos começar a reconstruir um ministério que produz políticas públicas de cultura. Hoje, essa Secretaria de Cultura não produz nenhuma política pública de cultura.
A Ancine não foi extinta mas ficou travada, sem recursos. O que vocês planejam para o audiovisual?
O governo atual tinha tirado a Condecine do Orçamento. Tinha aberto mão da contribuição que garante toda a estrutura de financiamento do audiovisual brasileiro. A gente conseguiu já dialogar com o relator do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB-PI), e a Condecine está voltando para o Orçamento de 2023. Sem ela não tem produção audiovisual nos próximos anos. O fim da Condecine teria o mesmo efeito do fim da Embrafilme na época do governo Fernando Collor de Mello. A partir de agora, a gente pode voltar a pensar na reestruturação do setor. Vamos reestruturar a Ancine para que volte a operacionalizar as políticas, realizar os editais, vai ser um trabalho de longo curso, mas a gente quer que a Ancine trabalhe em linha com essa política de fomento ao audiovisual e de priorizar esse setor como estratégico para a economia, para a cultura e para a arte brasileira.
Uma das ideias que foram discutidas é deslocar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) do Ministério da Comunicação para a pasta da cultura. Por quê?
Essa é uma discussão que ainda não está encerrada dentro da transição, mas há bastante chance de isso acontecer. A EBC tem a TV pública e um conjunto de rádios, que são um instrumento de promoção e difusão cultural importante. O governo Bolsonaro fez uma junção entre comunicação pública e estatal. Transformou a TV Brasil em um veículo de governo. Fez o mesmo com as rádios. A ideia é separar essa estrutura, que a gente tenha uma TV pública, que não trabalhe fazendo promoção só daquilo que o governo faz. É importante que o governo tenha um instrumento para fazer isso, é obrigação dele dar visibilidade, mas que se tenha um veículo público de rádio e TV e que esteja pensando sua programação a partir não das necessidades governamentais, mas mais orientado ao estilo do que são as grandes TVs públicas do mundo, como a TVE da Espanha, a BBC. E para um projeto desse tipo, a avaliação de muita gente, e inclusive a minha, é de que um lugar onde se conseguiria desenvolver esse projeto com maior autonomia seria no âmbito do Ministério da Cultura.
Outra ideia que vocês estão discutindo é a regulação do streaming (vídeos sob demanda). Qual a importância desse debate?
Essa é uma recomendação que a gente vai fazer, que o governo discuta a regulamentação do streaming, do vídeo sob demanda, que é um tema fundamental para o futuro do audiovisual. Hoje, a União Europeia (UE) fez uma legislação bem avançada em relação a isso. Quando se fala em regulamentação, não se trata do conteúdo. Estamos falando de janela para produção nacional, como a nossa produção vai aparecer na Netflix, no HBO, como entra, qual tipo de regulamentação de direitos autorais vão ser usados. Hoje, existe uma dificuldade grande, empresas estrangeiras usam regulamentação de direitos autorais às vezes que não são nacionais dentro do Brasil, porque a gente não tem nenhum tipo de regulamentação, de regulação para atuação delas no Brasil. E a própria contribuição, como esse conjunto. A Condecine veio da TV a cabo, a TV a cabo tem um ciclo de vida, de tecnologia inclusive. O streaming é a nova tecnologia, como é que a gente garante a sustentabilidade da produção de conteúdo a partir disso. Esse é um debate que precisa ser feito, todos os países estão fazendo: Coreia do Sul, EUA, Europa, cada um têm a sua. Nós ainda não. É um tema urgente, uma demanda de todo o setor audiovisual brasileiro, e tenho certeza de que vai ser um tema discutido pelo governo.