Se você observasse Hebe de Bonafini à distância, sem a conhecer, talvez imaginasse que aquela senhorinha com óculos escuros, Ray-Ban, de armação vermelha, e lenço branco no cabelo fosse apenas uma vovó como tantas circulando na multidão. Mas bastava que abrisse a boca para despertar paixões e ódios.
Bonafini guardava, dentro de si, a pior de todas as dores de uma mãe: perder um filho. Em seu caso, ela não perdeu um. Perdeu dois. E, mais terrível ainda, nunca viu seus corpos. Toda noite, convivia com a ilusão de esperar que Jorge e Raúl batessem à porta. Nunca bateram. Hebe de Bonafini faleceu neste domingo (20), aos 93 anos, sem nunca saber como seus filhos, desaparecidos, foram mortos pelo regime militar que se abateu sobre o país vizinho entre 1976 e 1983.
Era assim na ditadura: na calada da noite, uma unidade militar entrava nas casas das famílias e sequestrava jovens de esquerda. Mais de 30 mil foram raptados, torturados e mortos, segundo organizações de direitos humanos. Cerca de 500 crianças nasceram nos porões do regime. Os filhos dos presos políticos eram entregues a famílias ligadas aos comandantes militares, que os adotavam, mudavam seus nomes e os criavam, escondendo seu passado.
Filho de Bonafini, Jorge, estudante de Física de 26 anos, foi sequestrado em 8 de fevereiro de 1977. Durante duas semanas, a mãe percorreu delegacias e quartéis com um recipiente de comida e uma muda de roupa em mãos. Logo soube que sua busca era semelhante a de outras mães, que enfrentavam o mesmo drama.
Em 30 de abril daquele ano, ela e outras 13 mulheres pararam em frente à Casa Rosada com as fotos de seus filhos, exigindo uma resposta do ditador Jorge Videla. A polícia ordenou que elas circulassem. Então, em silêncio, elas começaram a dar uma volta em torno da Pirâmide na Praça de Maio. Deram uma, duas, três, quatro... 1 milhão de voltas. Todas as quintas-feiras, passaram a se reunir ali, como "viejas locas", usando lenços brancos com os nomes de seus queridos bordados no pano, dando voltas à espera de respostas.
Nascia assim as Mães da Praça de Maio, com Hebe de Bonafini e Azucena Villaflor de Devincenti como líderes. Em 6 de dezembro, daquele mesmo ano, foi sequestrado o segundo filho de Bonafini, Raúl, estudante de Ciências Naturais, de 24 anos.
Em 1978, quando o mundo lançou seus olhos para a Argentina por conta da Copa do Mundo, enxergou aquele grupo de mulheres com panos brancos na cabeça caminhando em círculos pela Praça de Maio. Os crimes da ditadura viravam notícia internacional
Entrevistei Bonafini em Porto Alegre em 2001, quando ela participou do Fórum Social Mundial, e algumas vezes, posteriormente, por telefone. Aquela vovozinha da imagem em minha cabeça se desfez na primeira resposta: Bonafini guardava uma leoa dentro de si, contra o terrorismo de Estado. Por sua bravura, foi apelidada de La Roca (A Rocha), transformando a dor particular em uma chaga coletiva. O trabalho das Mães da Praça de Maio ajudou a localizar mais de 30 crianças filhas de presos políticos. Era também uma luta por identidade.
Com a vitória do kirchnerismo na Argentina, nos anos 2000, Bonafini e as Mães da Praça de Maio foram cooptadas pelo poder. Seu fervor na defesa dos direitos humanos foi canalizado cegamente para a defesa de Néstor e Cristina Kirchner, a ponto de se envolver em um escândalo de corrupção por desvio de dinheiro público. Em 2001, ela elogiou os ataques terroristas às torres gêmeas de Nova York. Por tempos, cerrou fileira ao lado de grupos extremistas como o ETA e as Farc e ficou ao lado de ditadores de esquerda, como Fidel Castro e Hugo Chávez.
Com sua morte, termina também um estilo de fazer política na Argentina.