Nada contra as homenagens à rainha Elizabeth II, que são merecidas, apesar de eu discordar de seu silêncio sobre os crimes cometidos pelo Império Britânico nas colônias, como a escravidão - que já comentei aqui. Também não sou insensível à morte da monarca, que considero âncora de nosso tempo e que garantiu a estabilidade do reino por 70 anos. Além disso, cada povo tem o direito de homenagear seus próceres conforme suas tradições e crenças.
Mas, enquanto isso, no mundo extramuros dos Windsor, na vida comezinha dos súditos de Sua Majestade, os britânicos vivem em uma espécie de limbo político. Pelo menos até o dia 19, data oficial do funeral de Elizabeth II. Desta segunda-feira (12) até tal data, serão sete dias: o parlamento deve ficar com os trabalhos suspensos, nenhuma discussão ou votação seriam feitos até que o caixão da rainha seja depositado ao lado do marido, Phillip, em Westminster. O site Politico especula que, se a contagem for de dias úteis (a tradição orienta 10), os parlamentares só retornariam em 17 de outubro, atrasando a votação do teto do preço da energia, prevista para 1º de outubro.
Apenas dois dias antes de morrer, a monarca deu posse a Liz Truss como nova primeira-ministra, que sequer conseguiu começar a trabalhar.
O país que Liz e Charles herdam enfrentam uma das maiores crises das últimas décadas: inflação na casa dos dois dígitos, a maior em 40 anos, custo de vida altíssimo, "catástrofe energética" no horizonte, com aumento de 80% do preço da energia, um continente em guerra, risco de separatismo da Escócia e sinais de que o Brexit foi uma opção equivocada.
A Europa está sem gás devido à guerra e se aproxima da recessão. E as decisões políticas não poderiam esperar pelos ritos de despedida.
Além de tudo isso, há ainda um longo caminho - de Liz e de Charles III - em busca de reconhecimento popular. Liz foi eleita com 80 mil votos de filiados ao Partido Conservador, que nem de longe representam o perfil da maioria dos eleitores de um país de 66 milhões de pessoas. Charles chega ao trono em um reino onde a monarquia ainda tem o apoio de 62% dos britânicos - mas que apoiava muito mais sua mãe do que a ele (sua popularidade em maio era de 54% contra 89% de Elizabeth). Sem falar que 37% dos súditos preferem que a coroa, depois de Elizabeth II, passasse diretamente para William. É claro que isso não ocorreria, a linha de sucessão é um dos pilares do sistema baseado na hereditariedade e hierarquia.
Liz Truss e Charles III têm muito trabalho a fazer. E, talvez, muitas das questões urgentes do reino não devessem esperar o período do luto oficial. As ações políticas perfeitamente poderiam estar sendo tomadas em meio à longa despedida.