Depois dos bombardeios dos primeiros 40 dias, a guerra na Ucrânia começa a exibir as cenas mais horripilantes de um campo de batalha: o resultado do conflito no terreno, com centenas de corpos amontoados a céu aberto.
O último balanço do massacre em Bucha, na periferia de Kiev, dá conta de mais de 410 corpos de civis pelas ruas. Com a retirada recente das tropas russas no norte do país, as cenas macabras foram descobertas: cidadãos mortos com as mãos amarradas às costas, cadáveres de motoristas esmagados por tanques dentro de seus carros e dezenas de pessoas jogadas em valas comuns.
Diante das cenas dantescas, cresce o clamor da comunidade internacional para que a Rússia e seu presidente, Vladimir Putin, sejam levados a cortes internacionais e julgados por crimes de guerra, contra a humanidade e genocídio.
Mas qual a chance de isso ocorrer?
A resposta rápida e prática: praticamente nula. Principalmente no caso de Putin como indivíduo. O Tribunal Penal Internacional (TPI), criado a partir do Estatuto de Roma, em 1998 (em vigor desde 2002), julga pessoas, líderes, personalidades de países signatários e que ratificaram esse documento (123 países). A Rússia não reconhece a autoridade desse tribunal (algo que os EUA também não fazem, diga-se de passagem). Também a Ucrânia não é signatária.
Outra dificuldade, o TPI não realiza julgamentos sem a presença do réu.
Como a Rússia não reconhece o tribunal, o Estado russo jamais entregaria Putin ao TPI, mesmo depois que ele deixasse o governo. O líder também não poderia ser preso na própria Rússia por esses crimes por ordem internacional - a Justiça russa poderia fazê-lo, mas essa é outra discussão.
Restaria a chance de Putin ser detido ao pisar em algum país signatário do Estatuto de Roma, desde que haja ordem internacional de detenção expedida pelo Tribunal, mas como ele não deve viajar tão cedo a outra nação, por conta das sanções econômicas e devido ao fato de Rússia ter se tornado um pária internacional, isso não deve ocorrer.
Então, não há nada a fazer?
Há, mas são processos longos, demorados e de difícil reunião de provas - normalmente as evidências de crimes de guerra são destruídas pelo país invasor. Uma saída, admitida pelo procurador-geral da Corte, Karim Khan, seria a partir de uma mudança de entendimento: embora a Ucrânia também não seja membro do TPI, o país poderia dar jurisdição à Corte para investigações em seu território - inclusive isso já ocorreu em duas ocasiões, a partir de novembro de 2013, para análise das violações ocorridas durante os protestos na Euromaidan, em Kiev, e a partir da anexação da Crimeia, em 2014.
Mesmo assim, seria apenas uma investigação, sem o julgamento em si, uma vez que não se teria a presença do réu em Haia.
O fato de a Rússia não reconhecer o TPI é algo bem corriqueiro entre potências e que acabam limitando as ações do Tribunal. Possíveis crimes de guerra envolvendo Israel (nos Territórios Palestinos) e os EUA (no Afeganistão e no Iraque) não foram a julgamento. Além disso, para personalizar a responsabilidade também são necessárias evidências de ordem expressa do comandante-em-chefe nas ações de crimes de guerra (e não apenas suas atribuições enquanto representantes dos Estados), o que é muito difícil de se provar.
A outra alternativa é que algum Estado membro do Estatuto de Roma leve a situação diretamente à Procuradora, o que já ocorreu - 39 países enviaram pedidos. Mesmo assim, há de novo a questão da presença do réu. E volta a dificuldade de Putin ser preso.
É o caso, por exemplo, o ex-comandante do Sudão Muhammad Ali Abd-Rahman, acusado de 31 crimes de guerra e contra a humanidade. A procuradoria havia pedido sua prisão em 2009, mas ele só foi preso em 2020. A partir daí, o processo avançou.
Outra possibilidade de responsabilização seria a partir de uma investigação por genocídio, que já corre na Corte Internacional de Justiça (CIJ), que também tem sede em Haia, mas, diferentemente do TPI, não julga pessoas, apenas Estados (membros das Nações Unidas).
Uma terceira opção seria a criação de um tribunal especial para julgar Putin por um grupo de Estados interessados, como membros da Otan, da União Europeia ou os Estados Unidos. Os tribunais como de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, para julgar crimes nazistas, e o Tribunal Especial para a Ex-Iugoslávia, criado pela ONU, de forma temporária (diferentemente do TPI, que é permanente), são exemplos. O ex-líder sérvio Slobodan Milosevic foi julgado por essa última Corte pelos crimes cometidos durante as guerras nos Bálcãs. Ele morreu em sua cela antes que o tribunal desse o veredicto. Seu aliado sérvio-bósnio Radovan Karadzic e o líder militar sérvio bósnio general Ratko Mladic foram julgados, condenados e sentenciados a penas de prisão perpétua.
Outros tribunais temporários julgaram os crimes na guerra civil em Ruanda e Serra Leoa. Foram criados pela ONU. Em 2012, Charles Taylor, ditador da Libéria, foi condenado a 50 anos de prisão por patrocinar atrocidades em Serra Leoa. Ele cumpre prisão no Reino Unido. No caso desses tribunais especiais (temporários) há mais uma facilidade para Putin. Como precisam ser aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU, obviamente a Rússia usaria seu poder de veto para bloquear qualquer iniciativa.
Não é impossível que Putin vá a julgamento. Mas é difícil e provavelmente seria daqui a vários anos.