Desde o início da pandemia de coronavírus, no final de 2019, a realidade africana intriga especialistas, autoridades médicas e público em geral que acompanha esse triste capítulo da história da humanidade. Por que, enquanto boa parte do mundo era atingida em cheio pela covid-19 (só no Brasil foram 30,3 milhões de casos e 662 mil mortos até agora), em países da África esses números da doença são relativamente baixos. Seriam os africanos mais imunes ao vírus graças ao convívio com epidemias em alguns dos locais mais miseráveis do planeta?
Para se ter uma ideia, enquanto a Europa acumula 2.390 mortes por milhão de habitantes por covid-19, esse índice na África é de apenas 184 óbitos por milhão - praticamente 10 vezes menor. Desde o início de março de 2022, o continente também passou a ter a menor mortalidade do planeta, superando a Oceania, região do mundo conhecida pelas eficazes práticas de combate à doença e que abriga países como Austrália e Nova Zelândia.
As hipóteses foram muitas, inclusive de quem desconfiou de que os baixos índices se davam em razão da subnotificação. Agora, um estudo da Universidade de Boston no necrotério do Hospital Universitário de Lusaka, em Zâmbia, sugere que essa é, mesmo, a mais provável das possibilidades. Quase um terço dos mais de mil corpos levados para o local, entre 2020 e 2021, apresentaram teste positivo para Sars-CoV-2, o que indica que muito mais pessoas morreram de coronavírus na capital do país do que registram os números oficiais.
Esse estudo, publicado na MedRxiv (leia a íntegra da pesquisa aqui), derruba o chamado "paradoxo africano", segundo o qual a pandemia teria sido menos grave no continente do que em outras partes do mundo.
A realidade no necrotério do hospital, que recebe cerca de 80% dos corpos de pessoas que morreram em toda Lusaka, sugere o mesmo cenário em outros países africanos, onde faltam testes e infraestrutura médica.
- Ignorar a verdadeira extensão da covid-19 em Lusaka é muito errado. Eles tiveram suas famílias destruídas - disse Christopher Gill, um dos autores do estudo e pesquisador da Universidade de Boston, em Massachusetts.
A pesquisa ainda precisa ser revisada por pares.
Quando a covid-19 começou a ganhar o mundo, muitos pesquisadores inclusive sugeriram que a suposta menor gravidade na África devia-se à juventude de sua população. Gill e os colegas embrenharam-se nos números do necrotério. Os corpos dos cadáveres que chegaram ao local testaram positivo para covid-19 em 32% dos casos gerais. Em momentos de pico da doença, esse índice chegou a 90%, quando as variantes Beta e Delta se espalharam. Além disso, apenas 10% das pessoas cujo teste positivou após a morte haviam registrado a presença do vírus quando ainda estavam vivas. Algumas apresentaram falsos negativos, mas a maioria nunca foi testada.
Até agora, houve menos de 4 mil mortes por covid-19 em Zâmbia, país de 19 milhões de habitantes.
Os números de Lusaka combinam com as estatísticas da África do Sul, onde outro estudo de 2021 descobriu que apenas entre 4% e 6% das infecções por coronavírus em duas comunidades foram registradas pelos dados oficiais. Uma pesquisa nas mesmas comunidades mostrou que 62% dos participantes foram infectados pelo menos uma vez entre julho de 2020 e agosto de 2021.