Doze anos depois de ser colocada para correr por uma manobra política - para muitos, um golpe - da direita, a esquerda está voltando ao poder em um pequeno país da América Central que já tragou, o Brasil, para o epicentro de sua crise interna.
Em 2009, o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, um típico caudilho latino-americano que havia tentado mudar a Carta Magna para que pudesse ser reeleito para mais um cargo, foi deposto do cargo e expulso do país. A acusação: justamente atentar contra a Constituição. A manobra política - ou golpe -, em que frestas constitucionais foram aproveitadas, terminou por defenestrá-lo do país, junto com a mulher Xiomara Castro e alguns seguidores.
Em uma operação sigilosa, Zelaya retornou na calada da noite a Honduras, abrigando-se na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. Detalhes do envolvimento do governo de Luiz Inácio Lula da Silva na operação de ingresso do presidente afastado, seu aliado político e ideológico, na sede diplomática brasileira até hoje não são claros, mas o fato é que ele foi declarado "hóspede do Brasil". Estava aberta a maior crise internacional envolvendo a nossa política externa na primeira década do século 21.
Zelaya permaneceu sitiado por quatro meses na embaixada sitiada pelas tropas do governo de Roberto Micheletti, que havia assumido o poder. Como enviado do Grupo RBS a Honduras, compartilhei de alguns dias da rotina no interior do prédio diplomático transformado em palácio por Zelaya. Ele, sua mulher, Xiomara, utilizavam a sala do embaixador como dormitório, controlavam as informações que nós, não mais do que seis jornalistas lá dentro, emitíamos para o mundo, e organizava um poder paralelo que incendiava, do lado de fora, os apoiadores. Do lado de fora, Tegucigalpa vivia um estado de pré-guerra civil, com marchas e contramarchas diárias, invasão de emissoras de rádio e TV, empastelamento de jornais e toque de recolher - realidade na qual, ser repórter brasileiro, atraía a ira de parte da população que não entendia por que o governo Lula estava "se metendo" em seus assuntos internos.
A "hospedagem" de Zelaya durou quatro meses. Graças a um acordo com o governo, ele deixou o país, recebendo asilo na República Dominicana.
Passados 12 anos, a esquerda volta ao poder em Honduras, mas não com Zelaya. É sua mulher, Xiomara Castro, virtualmente eleita presidente - a apuração ainda não terminou, mas ela lidera com mais de 20 pontos percentuais sobre o segundo colocado, Nasry Asfura, que já reconheceu a derrota. Lá, não há segundo turno.
O país já não vive o clima de guerra civil daquele 2009, mas a ação das gangues tornaram Honduras uma das nações mais violentas do continente. Além disso, como todos os países do globo, em especial os mais pobres, vive reflexos duros da pandemia: o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu 9% e a dívida externa chega a US$ 15,2 bilhões, o equivalente a 57% da riqueza do país frequentemente assolado por furacões que abalam o centro industrial da nação. A crise social tem levado milhares de pessoas a abandonar seu país e seguir a marcha dos migrantes centro-americanos rumo aos Estados Unidos.
A nova presidente assume com o discurso de união nacional e reconciliação. As dúvidas não se restringem a como ela lidará com o desafio social, o mundo pós-pandemia, o papel que Zelaya terá em seu governo e não cederá ao populismo e ao desejo de se perpetuar no poder. Mas principalmente se Xiomara será capaz de resistir à tentação da vingança - tão comum a grupos políticos execrados do poder, perseguidos e que, de alguma forma, retornam à cena política.