Na última vez em que estive na Venezuela, em 2019, duas cenas me marcaram no aspecto econômico.
A primeira era a dificuldade para sacar bolívares em caixas eletrônicos. Era necessário percorrer vários locais, e simplesmente não se conseguia dinheiro. A segunda era uma imagem que circulava pelos grupos de WhatsApp dos venezuelanos e que eles mostravam aos estrangeiros, com certo tom de deboche, sempre que alguém perguntava sobre a desvalorização de sua moeda. Na foto, uma pilha de bolívares aparecia ao lado de um único sabonete a indicar a quantidade absurda de notas para comprar um produto que não custava mais do que o equivalente a US$ 1. Só que no país da hiperinflação, esse US$ 1 representava 4 milhões de bolívares.
No país de faz-de-conta da ditadura bolivariana, Nicolás Maduro fez mais uma mágica. Tirou da cartola a partir desta sexta-feira uma medida que era comum na América Latina dos anos 1980 e 1990: cortar zeros da moeda para conter a hiperinflação, que, em 2021, deve ficar na casa dos 1.600%.
Essa é a terceira reconversão desde 2008. Em 13 anos, foram 14 zeros eliminados do bolívar. Desta vez, foram seis. Assim, os 4 milhões de bolívares necessários para comprar US$ 1 se tornou, "milagrosamente" (ou seria melhor dizer artificialmente?) quatro bolívares. Além disso, a partir desta sexta-feira, entrou em vigor um novo conjunto de notas de cinco, 10, 20, 50 e 100 bolívares.
A hiperinflação é a maior responsável pela pobreza extrema em que vive 76,6% da população, segundo levantamento recente da Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi), realizada por duas importantes universidades de Caracas, a Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) e a Universidade Central da Venezuela (UCV).
Mas por que o governo decidiu fazer isso agora? Tudo indica que, por trás da decisão, está um cálculo político. Em 21 de novembro, haverá eleições regionais e municipais no país. E, pela primeira vez desde 2017, a oposição concordou em participar. Ou seja, mesmo que se saiba que os resultados possivelmente serão fraudados pelo regime de Maduro, ao menos estarão em campo todas as forças políticas venezuelanas. Também pela primeira vez em anos, haverá observadores internacionais no país a analisarem a lisura do pleito - a União Europeia já informou que enviará funcionários a Caracas.
Será o primeiro grande teste para a oposição, depois do fracasso da aventura de Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente em 2019, foi reconhecido por vários países, inclusive o Brasil, mas nunca ocupou a presidência de fato. O segundo será a eleição presidencial em abril do ano que vem. Participar do jogo político pode dar legitimidade a Maduro. Mas boicotá-lo, como a oposição vinha fazendo, também não funcionou. Só vitaminou o regime.