Aos 37 anos, a correspondente da Euronews Anelise Borges é a primeira jornalista brasileira a entrar no Afeganistão desde a queda de Cabul, em 15 de agosto.
Natural de Porto Alegre, a repórter entrou no país em 1º de setembro a partir da fronteira com o Paquistão. Desde então, tem transmitido reportagens para emissora europeia de momentos tensos da vida sob o novo regime do Talibã.
Nesta entrevista à coluna, ela conta os momentos de tensão de um protesto que acabou em repressão pela milícia, no qual seu fixer (profissional local contratado como intérprete, produtor ou motorista em uma zona de guerra) foi detido. Em outra ocasião, Anelise jantou com um líder Talibã, após entrevistá-lo.
Formada em jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Anelise mora fora do Brasil há 15 anos. Já viveu na Turquia, Catar e Reino Unido. Atualmente, está baseada em Paris. Ela fez reportagens em mais de 30 países, entre eles Síria, Líbia, Belarus e Irã, e passou 10 dias no navio de ajuda humanitária de regate de migrantes, o Aquarius.
Na quarta-feira (15), ela conversará de forma virtual com estudantes do curso de Comunicação da Unisc. O bate-papo, a partir das 19h, será aberto ao público em geral, que poderá acompanhar neste link.
A seguir, a entrevista direto de Cabul.
Desde quando você está no Afeganistão?
Entrei dia 1º de setembro. Estou aqui ainda, em Cabul. Todos os dias, a gente tem uma ligação com a Redação (da Euronews) para ver se ainda dá para ficar mais um dia. As coisas estão sendo avaliadas dessa maneira. Devo ir embora na semana que vem porque a gente acha que já me expus bastante, tenho bastante receio por causa da minha equipe aqui. Não quero expô-los de maneira que não possam continuar trabalhando depois que eu for embora.
Fixer, intérprete e motorista?
Sim, estou com um motorista e com um fixer. E meu fixer, que filma também, foi detido pelo Talibã e ficou quatro horas sob detenção. Ele estava no mesmo grupo daqueles jornalistas que foram bem machucados. Bateram nele bastante, e ele saiu de lá (do local da detenção) bem abalado. Naquele dia, pensei em ir embora.
Você estava naquela manifestação em que vários jornalistas foram agredidos?
Sim, estávamos juntos, mas levaram só ele (o fixer) de nosso grupo. Levaram muita gente, inclusive mulheres, naquele dia. Na confusão, consegui voltar para o carro. A gente ficou esperando, mas imaginei que ele havia sido detido porque a situação estava muito tensa naquele dia.
Qual era a reivindicação das mulheres naquele protesto?
Era um grupo minúsculo, não mais do que 20 mulheres. O governo havia sido anunciado, e não havia mulheres na lista. Além disso, tinham substituído o Ministério das Mulheres pelo Ministério da Virtude e da Prevenção dos Vícios. As mulheres estavam na rua protestando. Foram vários dias, elas estavam desesperadamente tentando protestar, enquanto tinham aquela janela de oportunidade, aquele espaço ali, porque sabiam que o mundo estava as vendo. Mas, desde então, não vi mais manifestações, porque, a partir de agora, são ilegais. As meninas desapareceram das ruas.
Qual foi a sensação ao cruzar a fronteira e ter contato com as primeiras "autoridades" do Talibã?
Confesso que eu estava com bastante medo. Calculei os riscos, tentei fazer um estratagema na minha cabeça, mas eu sabia que as variáveis eram tantas... Porque o Talibã não é um grupo homogêneo, e você pode esbarrar com um soldado deles que não quer deixar você passar. Eu pensei: "Se eu encontrar muito problema ali na travessia, ainda poderei voltar, vão me mandar embora. Volto para o Paquistão na mesma hora". No momento em que eu atravessei a fronteira e que vi a bandeira do Talibã e aqueles soldados muito armados e muito barbudos, era uma visão muito imponente. Agora, quando cruzo com eles nas ruas, comecei quase a me acostumar com a presença deles, mas ainda é uma imagem muito surreal. Porque, até então, a gente falava deles, via fotos deles, mas para encontrá-los tinha de ir para as províncias que controlavam ou subir as montanhas. Agora, eles estão em todos os lugares. Eles estão no alfaiate, fazendo roupa. Estão no parque de diversões, eu acabei de voltar de lá e eles estavam lá, no carrinho de auto choque. Eles estão na farmácia, no restaurante fast-food, que a gente vai comprar pizza. Eles estão em todos os lugares. E ainda é muito impressionante vê-los.
Os talibãs estão em todos os lugares. Eles estão no alfaiate fazendo roupa. Estão no parque de diversões, no carrinho de auto choque. Eles estão na farmácia, no restaurante fast-food, que a gente vai comprar pizza.
Como foi a entrada?
Atravessei a fronteira, e eles me pararam. A entrada por terra é muito surreal, quase como Gaza, são corredores com grade. E você não tem como passar e evitá-los. Tinha um grupo de uns cinco jovens soldados. Eu estava com outras pessoas na minha frente, pediram para todo mundo parar. E começaram a abrir as nossas malas. Eu trouxe um colete à prova de balas e capacete. Eu pensei: "Agora vai complicar minha vida, como vou explicar". Quando um deles abriu minha mala, acho que ele acabou abrindo de um jeito que viu uma roupas íntimas primeiro. Ele fechou minha mala com uma rapidez e ficou tão sem graça. Mandou eu passar e nem olhou na minha cara. Então, eu fui andando e logo mais para frente já estava meu fixer, me esperando. Foi tudo muito tenso, porque ele (o fixer) só olhou pra mim, fez sinal com a cabeça, pegou minha mala e a gente andou até o carro sem trocar uma palavra. Porque ele queria evitar ter de explicar que era jornalista, porque naquele momento eu não tinha autorização nenhuma para estar ali. Eu só tinha um visto do governo que havia caído.
Como você é tratada, como jornalista mulher, pelo Talibã?
Estou usando uma roupa bem conservadora, um vestidão e um lenço preto sobre a cabeça. Escolhi isso para justamente não atrair muitos olhares para mim. As afegãs têm biótipo diferentes, mas eu passaria por uma afegã. Tenho olhos claros, e muitas mulheres daqui têm olhos claros e a pele um pouco mais clara. Se eu não falar muito, eles não se atentam muito em relação a minha presença. Entro nos restaurantes, me mostram a "seção da família", porque não posso me sentar onde está o Talibã, só entre homens. Eles ficam em uma outra sala. Eles me mostram onde as famílias sentam, eu sento lá e tudo bem. A questão de ser mulher aqui ajuda a entrar em espaços femininos. O meu motorista e o meu cinegrafista não entram quando vou entrevistar uma mulher na casa delas, por exemplo. Estou aqui há mais de 10 dias, e fui parada em apenas um checkpoint. Porque eles não têm mulheres para apalpar, então eles olham e dizem: "Vai, vai... pode ir". Um combatente parou nosso carro, fez os meninos desceram do carro, os revistou e fez sinal para eu tocar em mim mesma. Aí, ele falou: "Tá, pode ir". Muitas vezes ajuda (ser mulher), porque eles são muito conservadores. Se estou me comportando da maneira que eles esperam que eu me comporte, eles me respeitam, me deixam longe, não falam muito comigo.
Muitas vezes ajuda (ser mulher), porque eles são muito conservadores. Se estou me comportando da maneira que eles esperam que eu me comporte, eles me respeitam, me deixam longe, não falam muito comigo.
E nas entrevistas?
Quando eu pedia para falar com eles, normalmente me respondiam. Agora, a gente está sentindo um pouco mais de reticência por parte deles. Acho que as imagens deles comendo sorvete na rua, entrando na academia e tentando decifrar o que eram aqueles aparelhos de ginástica, fez com que os comandantes passassem a dizer para que não se deixem mais ser fotografados, que se preservem, que devem estar com o uniforme e os sapatos direitos. Estão começando a cuidar da imagem.
Você percebe um Talibã diferente, com certa moderação?
Acho bem difícil. Principalmente, pelos sinais que nos deram nessas primeiras semanas, apesar do discurso ser muito mais moderado e obviamente não estamos falando em execuções em praça pública e chicotes em público. Mas as punições que a gente está vendo longe da capital, que estão circulando por aqui pelos grupos de WhatsApp, são muito brutais. São imagens de execuções na rua de pessoas que eles acham que eram soldados do governo, sem absolutamente nenhuma chance de explicação e de conversa. A gente viu também imagens muito violentas vindo de Panshir, da província de resistência, que eles estão dizendo que conquistaram. Me impressiona muito o fato de a maioria deles ser muito jovens. Eu conversei outro dia bastante com um menino de 18 anos, que falava inglês fluente e que tinha se alistado ao Talibã quatro dias antes. Ele falou que resolveu fazer isso porque havia tomado a decisão de não sair do país. O irmão dele mora na Áustria e havia implorado para que ele fosse para lá. Mas o rapaz falou: "Não vou deixar meu país agora, porque agora meu país precisa de mim". Eu perguntei: "Mas teu país precisa de ti para quê?" Ele falou: "Para defender meu país, eu preciso consolidar essa expulsão dos invasores". Eu perguntei: "Quem são os invasores?" Ele falou: "Os americanos e todos os estrangeiros que vem aqui". Questionei: "Então, sou uma invasora?" Ele falou: "Não, você é nossa convidada. Você não está aqui de uma forma violenta".
É uma geração que não viveu o 11 de Setembro, mas tem o mesmo discurso contra o Ocidente.
É, mas também porque a gente fala: "Que horror que o Talibã tomou o poder, que desastre". Mas as coisas não estavam tão bem assim com a administração do Ashraf Ghani (presidente que deixou o poder diante do avanço do Talibã). Os políticos e o governo anterior eram extremamente corruptos, e os soldados também acusados de crimes brutais. A violência é uma coisa muito presente nesse país. É uma coisa muito concreta. É muito difícil você dizer que um lado é ruim e o outro é bom. Claro que o nível de brutalidade que esse país sofreu nas mãos do Talibã nos anos 1990 não se compara. Foi uma coisa absurda. E algumas coisas que a gente está vendo de novo circular pela internet refletem esse mesmo nível de brutalidade. Entretanto, acho que esse é um país diferente, as pessoas são diferentes, e o mundo mudou: hoje em dia a gente tem Twitter, redes sociais. Por mais que tentem prender pessoas e torturá-las, hoje em dia é muito difícil controlar a informação e o que as pessoas estão vendo. Acho que eles (talibãs) ainda são extremamente conservadores, a formação do governo diz muito mais do que as mensagens de inclusão e de flexibilidade. Apontaram 33 mulás, que eram da velha guarda do Talibã, quatro que estão nas listas negras americanas. Falaram: "É isso aí, se vocês não gostam do Haqqani (Sirajuddin Haqqani, novo ministro do Interior procurado pelo FBI), o problema é de vocês, a família Haqqani é muito importante para nós, para o Talibã". Então, é uma mensagem muito forte de que eles não estão nem aí para o que a comunidade internacional pensa. Claro que estão preocupados com a ajuda humanitária, dinheiro, precisam liberar as reservas do banco central afegão que estão nos EUA, US$ 9 bilhões, e eles estão com uma crise muito grande de falta dinheiro. Mas acho que a mensagem do Talibã ainda está sendo de muito desdenho pela comunidade internacional, principalmente pelos EUA. Eles querem mostrar que ganharam essa guerra. E essa mensagem é tanto para fora quanto para dentro. Eles querem que as pessoas tenham medo, querem que se impor novamente. Mas são muito mais abordáveis.
Como foi o episódio em que você teve de jantar com líderes do Talibã?
Eu jantei com um grupo porque fui entrevistar um comandante na casa que eles invadiram. Eles invadiram muitas casas em Cabul. As pessoas foram embora, eles vieram de outras províncias, e estão morando nas casas dessas pessoas. A gente terminou a entrevista, e ele falou: "Agora, a gente vai jantar". Eu falei: "Oi?" Não estava nem um pouco a fim de jantar, não estava com fome, não tinha nem um pouco de ânimo para isso. Meu produtor falou: "Aqui, pouco importa se ele é Talibã ou não, você não sai da casa da pessoa se ele oferecer para comer, você vai ter que comer". Sabe o que eu comi com o Talibã? Arroz e feijão. Eles mudaram porque o país mudou, porque o mundo mudou, mas a essência do Talibã continua a mesma, os valores da sharia, a leitura deles do Islã é uma leitura extremamente conservadora. Eles vão governar esse país de maneira a não incluir as minorias. As mulheres vão ser deixadas de lado, vão ser apagadas. Quiçá por parcerias com outros países, se eles deixarem os Emirados Árabes Unidos e o Catar se envolver um pouco mais, talvez mulheres consigam negociar um pouco esse papel em ONGs, mas acho que, do governo, não vão fazer parte nunca. Enquanto o Talibã estiver no poder, não vai ter espaço para mulher. Então, é um clima de muito medo. É bem palpável esse medo entre as pessoas.