"Guerra da vacina", "diplomacia da vacina" e agora... "turismo da vacina".
A pandemia tem nos ofertado, em pouco mais de um ano, diferentes fenômenos sociais. No início, testemunhamos a fase hobbesiana do "primeiro eu". A "guerra da vacina" foi uma reedição, com requintes comerciais, da "guerra dos respiradores", protagonizada na primeira onda da covid-19 entre países europeus que disputavam a tapas, em pistas de aeroportos, equipamentos de UTI e máscaras vindos da China. Foi quando acordamos, como humanidade, para nossa dependência dos chineses. Descoberto o imunizante contra a covid-19, teve início, então, o conflito entre União Europeia (UE) e Reino Unido, leia-se Oxford/AstraZeneca, para a entrega de lotes de vacina prometidos pelo laboratório ao bloco econômico.
Passada essa fase, testemunhamos a "diplomacia da vacina", que não é nada mais nada menos do que o uso do imunizante como projeção de poder por países sede de laboratórios que produzem as doses. É o que faz a China na África, América Latina e Ásia, ao distribuir lotes acompanhados de interesses econômicos e políticos. Também é a estratégia adotada pela Índia na Mongólia e em seu entorno estratégico, Butão e Mianmar. E o que adota a Rússia na América do Sul, em países como Argentina, Bolívia e Venezuela.
Ingressamos agora na fase 3, a do "turismo da vacina". Com doses sobrando nos Estados Unidos e a pandemia em aceleração do Rio Grande (o da fronteiro México-americana) para baixo, latino-americanos ricos ou de classe média alta passaram a buscar os produtos em território americano. Não é emprego, não são as praias nem a Disney. É o "american way of life" sem máscaras, o mais próximo do velho normal, que desejam.
A peregrinação custa caro e dá trabalho. Além da passagem e estadia nos EUA, o turista da vacina precisa ficar de quarentena por 14 dias em um país intermediário (geralmente o México), antes de pisar em território americano.
A iniciativa atende ao desejo individual, mas, além de escancarar a desigualdade social entre Norte e Sul, a estratégia pouco ajuda no médio prazo. Só atingiremos como sociedade algum nível de imunidade coletiva quando mais de 70% da população for vacinada. Grosso modo, um punhado de turistas que volta de Miami com a dose no braço está resolvendo apenas e temporariamente o seu próprio problema. Mas não está ajudando a seu país. Vacinação é uma estratégia que só dá certo se for tratada como uma tática coletiva de saúde pública, que depende de muita gente estar imunizada para funcionar. Além disso, os próprios deslocamentos entre países podem contribuir para a disseminação do coronavírus. É por egoísmo que a situação epidemiológica brasileira está em níveis estratosféricos.