
A reclamação do governador da Bahia, Bruno Dauster, de que uma carga de 600 respiradores artificiais chineses comprada por Estados do Nordeste ficou retida no aeroporto de Miami, onde haveria conexão para o Brasil, é apenas a ponta do iceberg de uma guerra que já provoca atritos entre vizinhos europeus e, mais recentemente, entre a Europa e os Estados Unidos. O contrato no valor de R$ 43 milhões assinado pelo governo da Bahia como representante da região foi cancelado pela empresa fornecedora sem maiores explicações no inicio da semana. A suspeita é de que os equipamentos tenha sido destinados, agora, ao combate do coronavírus nos Estados Unidos, que teriam acertado pagar mais à empresa chinesa. O próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pincelou, em sua coletiva diária, o tema que a imprensa francesa tem chamado de “guerra das máscaras”.
Tudo começou como uma ousada ação diplomática travestida de solidariedade para conquistar corações e mentes de um Ocidente fragilizado pela devastação do coronavírus. Cargueiros chineses despejaram nas últimas semanas ajuda médica em nações europeias em apoio a países como Grécia, Espanha, Itália dilaceradas pela covid-19. Enquanto os Estados Unidos de Donald Trump culpavam a China pela origem do vírus, comparava a pandemia a uma simples gripe e isolava-se, os chineses ocupavam o vácuo geopolítico de uma Europa carente de equipamentos e profissionais de saúde.
Algo, no entanto, mudou nos últimos dias. A solidariedade cedeu lugar aos negócios. Na arena global, entrou em cena quem tem mais poder econômico - e na hora do pega para capar, em que máscaras viraram questão de sobrevivência na luta contra o coronavírus, a política de boa vizinhança entre os condôminos da União Europeia foi mandada às favas. A França, sempre tão fervorosa defensora da unidade do bloco, apreendeu, um mês atrás, um lote de máscaras proveniente da Suécia, que deveria chegar à Espanha e à Itália. O presidente Emmanuel Macron decretou a retenção de todos os equipamentos tipo existentes em território francês. Em Lyon, autoridades confiscaram 4 milhões de máscaras fabricadas pela empresa sueca Molnlycke na China e que, após chegarem ao porto de Marselha, estavam em Lyon, e de lá deveriam partir para Espanha e Itália, nações que haviam comprado o carregamento. O carregamento só foi entregue semanas depois graças a uma intervenção forte do governo sueco.
Artigo de sobrevivência neste momento, as máscaras de proteção produzidas na Europa não são suficientes para atender à demanda. A China é produtora de mais da metade das máscaras do mundo.
Passada a crise interna, agora é a Europa que reclama que os Estados Unidos estão abocanhando carregamentos chineses de máscaras - e de respiradores, como se pode suspeitar a partir do episódio com o carregamento que deveria ter aterrissado no Nordeste - encomendadas por outros países.
Mas o governo americano não trava uma guerra comercial com a China, você deve estar se perguntando? Sim, mas o jogo mudou, ao menos por enquanto. O tom de Trump foi modulado alguns decibéis abaixo desde o dia 27, quando ele conversou, por telefone, com o presidente Xi Jinping. Ambos concordaram em colaborar entre si no combate ao vírus.
Agora, são os próprios franceses que reclamam que os americanos estão colocando em ação práticas desleais para ficar com os suprimentos - algumas autoridades chegam a comentar que os americanos estariam oferecendo três vezes mais pelo material. Mais de 20 voos fretados foram despachados para Xangai para buscar equipamentos médicos - o primeiro, que pousou em Nova York, no domingo, 3, trouxe para território americano 130 mil máscaras N-95, 1,8 milhão de máscaras cirúrgicas e roupas e mais de 10,3 milhões de luvas. Além de França e Brasil, também o Canadá questiona o cancelamento de pedidos fechados com fornecedores chineses. O que começou como diplomacia chinesa se transformou em um leilão global por suprimentos - a China entrega para quem paga mais.