Quando o coronavírus aportou na Europa, chegado da Ásia e fechando fronteiras, provocando lockdowns e mortes, em cenas de colapso hospitalar que poucas vezes imaginávamos possível em países do chamado "primeiro mundo", houve a "guerra dos respiradores". Equipamentos, a maioria vindos da China, eram disputados a tapa nas pistas de aeroportos, sinal de que a boa e saudável solidariedade europeia seria mandada às favas e o que voltava a valer era o velho Estado hobbesiano do todos contra todos.
Milhões de mortos depois e uma vez descoberto o tão esperado antídoto contra a covid-19, veio a "guerra da vacina". Alguns governos compraram todos os lotes que farmacêuticas tinham capacidade de produzir, pensando primeiro em salvar suas populações - e reabrir suas economias. A União Europeia (UE) até hoje patina na corrida pela imunização, acusando a Astrazeneca, fabricante do produto da Universidade de Oxford, de quebra de contrato por entregar apenas um terço da encomenda feita. Um suposto protecionismo britânico não pode ser descartado, afinal, a pandemia chegou quando as regras do divórcio entre os vizinhos dos dois lados do Canal da Mancha ainda estava sendo costuradas.
Agora, o cenário está posto para a terceira guerra mundial da pandemia: a disputa pela suspensão das patentes de vacinas contra a covid-19. Na quarta-feira (19), os Estados Unidos, até então contrários a essa ideia, surpreenderam o mundo ao se colocarem a favor da proposta.
- Circunstâncias extraordinárias exigem soluções extraordinárias - disse em comunicado a representante do Comércio Exterior, Katherine Tai.
No dia seguinte, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que a UE "está pronta" para debater a iniciativa. Como na "guerra dos respiradores", os interesses individuais dos países e empresas ressurgem. O bloco vai rachar de novo porque, desta vez, as duas locomotivas da UE estão em lados opostos - a França de Emmanuel Macron é a favor da suspensão das patentes, a Alemanha de Angela Merkel é contrária. Explica-se: os franceses não têm, até agora, nenhuma vacina contra o coronavírus no mercado mundial. A Alemanha precisa proteger a BioNTech, que produz um dos imunizantes junto com a Pfizer.
Se entre os Estados nacionais já há divergências, espere até entrar no debate, que ocorrerá na Organização Mundial do Comércio (OMC), a indústria farmacêutica. Alguns laboratórios já se manifestaram, obviamente, contrários à ideia. O diretor da Pfizer, Albert Bourla, disse não ser "nem um pouco" a favor da iniciativa. BioNTech, por meio de comunicado à AFP, afirmou que não quer que a proteção intelectual prejudique a produção ou a oferta de vacinas, mas que a suspensão não aumentaria a produção e a oferta globais a curto e médio e prazos". Moderna emitiu opinião semelhante.
Em geral, todas defendem a questão tecnológica como argumento para a manutenção da propriedade intelectual.
Nunca na história da humanidade, a ciência descobriu, testou e colocou no mercado uma vacina tão rapidamente. Até a pandemia, não existiam no mercado imunizantes feitos a partir de RNA mensageiro, como os produtos de Pfizer/BioNTech e Moderna, processo que exclui a necessidade de inoculação de um vírus inativado no corpo humano, método clássico de produção de imunizantes.
Feitos como esse se devem à inovação, à criatividade, ao trabalho de homens e mulheres cientistas que dedicaram décadas de suas vidas à pesquisa e também ao dinheiro investido por empresários em infraestrutura nos grandes laboratórios. Mas também é verdade que muitos governos investiram e financiaram pesquisas para que se descobrisse o antídoto.
A despeito da discussão sobre se deve haver lucro ou não em meio a uma calamidade mundial, um argumento parece pairar sobre os demais. A "guerra dos respiradores" foi causada porque havia escassez de equipamentos em um mundo dependente de poucos fornecedores - a maioria da China. A "guerra da vacina" também só existe porque há pouca capacidade fabril e porque, para produzir os imunizantes, a maioria dos laboratórios depende de insumos que vem também de poucos lugares - a maioria, de novo, da China e também da índia. No caso da guerra das patentes, a situação se repete. A incapacidade de produção suficiente para toda a humanidade, seja ela de respiradores, máscaras, seringas, vacinas, quebre-se ou não as patentes, exige uma urgente readequação e diversificação das cadeias produtivas, que, nos últimos anos, migraram para um único polo fornecedor de matérias-primas.