É difícil se acostumar à "normalidade" de Joe Biden, depois de quatro anos em que nós, jornalistas de política internacional, acordávamos com tuites raivosos de Donald Trump, meticulosamente preparados para provocar manchetes estridentes. Mas, se nesses cem dias, comemorados nesta quinta-feira (29), o democrata trouxe de volta ao Salão Oval a arte da boa política, não se pode dizer que faltaram notícias. Biden tem pressa e marcou alguns gols.
O primeiro deles foi de âmbito interno. Prometeu vacinar 100 milhões de americanos contra a covid-19 nos primeiros cem dias. Ao alcançar a marca 58 dias antes do fim do prazo, dobrou a meta - e chegou aos 200 milhões também antes da quinta-feira. A imunização acelerada foi fundamental para os Estados Unidos barrarem o descontrole do coronavírus. Ainda são a nação com maior número de mortos e infectados, mas, enquanto os segundos e terceiros colocados vivem seu pandemônio - com curvas em alta e imunização a conta-gotas -, os EUA parecem ter estancado, por ora, a crise sanitária.
Na outra ponta da crise, a econômica, Biden conseguiu aprovar no Congresso um pacote de US$ 1,9 trilhão de resgate a famílias atingidas pela pandemia, com distribuição de cheques de US$ 1,4 mil, propôs um programa de infraestrutura estimado em US$ 2,25 tri e prepara um novo plano de US$ 1,8 tri de apoio aos mais necessitados.
Se não fizesse isso nos primeiros cem dias, talvez não o conseguisse nunca mais. O presidente lançou mão do capital político desse primeiro período de mandato, quando, mesmo em um país rachado ao meio como os EUA, ainda há gordura a queimar: os democratas comandam a Câmara e têm leve vantagem no Senado - com o voto de minerva da vice, Kamala Harris; e a popularidade de Biden, a essa altura, é melhor do que a de Trump e de George W. Bush no mesmo período de mandato.
Quando não foi possível transformar alguma ação em lei, o democrata abusou das ordens executivas, equivalentes ao decreto presidencial no Brasil. Foram 42 desde 20 de janeiro, a maioria para exorcizar o legado de Trump.
No cenário externo, quem esperava um presidente compassivo com os grandes adversários geopolíticos, se surpreendeu. Ele falou duro com a China e chamou Xi Jinping à mesa de negociações, ainda que virtual, para a Cúpula do Clima. Mas foi com a Rússia que a Casa Branca democrata mostrou as garras, elegendo Vladimir Putin como seu Malvado Favorito.
Em entrevista à CBS, Biden não negou quando o entrevistador perguntou se ele considerava o presidente russo um "assassino", dias antes de seu governo impor sanções ao Kremlin por suposta interferência em eleições americanas e ataques de hackers ao sistema de informática do governo.
A Cúpula do Clima não foi apenas um tema de ambiente - nem tampouco "somente" resultado da compreensão e "bom mocismo" de Biden em relação às mudanças climáticas. As metas de corte de emissões de gases poluentes, por parte dos Estados Unidos, que já foram os maiores poluidores do planeta, são corajosas - tirá-las do papel, é outro assunto. Mas a reunião serviu também a causas estratégicas importantes: recolocou os Estados Unidos na liderança global, depois de quatro anos de isolacionismo trumpiano, enviando um recado contundente à China e para quem acredita que o mundo está passando por uma transição hegemônica. Os EUA estão de volta ao jogo geopolítico. E mais: ainda que por dentro do sistema multilateral, retornando a concertos internacionais, como o Acordo de Paris, e à Organização Mundial da Saúde (OMS), mostram capacidade de liderar também por fora dos organismos globais, como foi o caso da Cúpula.
Nesses cem dias, Biden reconheceu o genocídio armênio do início do século 20, algo que nenhum outro presidente americano teve coragem de fazer, para não desagradar a Turquia, um aliado da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). E pegou carona no acordo alcançado por seu antecessor com os Talibãs para anunciar a retirada total das tropas do Afeganistão - algo que, apesar das promessas, nem Barack Obama nem Trump conseguiu fazer.
Os primeiros cem dias são um tempo simbólico, que os americanos costumam levar muito a sério para uma primeira análise da performance do inquilino da Avenida Pensilvânia, número 1.600. A partir de agora, é fim de lua de mel.
A oposição já começa a se mostrar incomodada com o aumento dos gastos públicos. A vantagem democrata no Senado pode ser também efêmera - pode durar apenas até a eleição de meio de mandato, no ano que vem. E a crise da migração na fronteira com o México, grandes esqueletos no armário deixados por Obama (porque não resolveu, apesar as promessas) e de Trump (porque a aprofundou), tem potencial para provocar a primeira dor de cabeça do governo Biden. Milhares de pessoas, muitas delas menores, atraídas pela mudança para um discurso mais humano, saturam as estruturas de acolhida. As prisões por tentativa de cruzar ilegalmente a fronteira, que já estavam em níveis mais altos em uma década durante os últimos meses de mandato de Trump, dispararam desde a chegada de Biden. Eis aí o cavalo de batalha dos republicanos para 2022.