Em 29 de julho do ano passado, quando o Kremlin anunciou a Sputnik V, muita gente, entre as quais me incluo, observou a descoberta com ceticismo. "É preciso ficar com os dois pés atrás com a vacina russa", escrevi.
A carência de dados sobre eficácia, segurança e processos de desenvolvimento da imunização do Instituto Gamaleya contra a covid-19, somada à tradicional falta de transparência russa ao lidar com assuntos sensíveis, ao autoritarismo e à ânsia de Vladimir Putin por projeção internacional, lastreavam minha opinião.
Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Mas, felizmente, eu estava errado. E a coroação do produto russo foi nesta quarta-feira (2), com o anúncio do estudo da revista The Lancet, a mais importante publicação científica na área da medicina, segundo o qual a Sputnik V mostrou eficácia de 91,6% em regime de duas doses. Agora sim, finalmente, os dados estão revelados internacionalmente e revisados por pesquisadores independentes, algo que faltou lá em julho, ausência essa que alimentava as desconfianças da comunidade científica.
O sucesso científico é um grande trunfo geopolítico para o governo Putin e chega em um momento em que o presidente russo é pressionado politicamente em nível doméstico. Por dois finais de semana seguidos, milhares de pessoas saíram às ruas de várias cidades para protestar contra a prisão do líder da oposição Alexei Navalny, detido assim que desembarcou em Moscou procedente da Alemanha - onde, aliás, ficou em tratamento por envenenamento, supostamente por agentes... russos. Só no último sábado, 4 mil pessoas foram detidas nos protestos.
Democracia, como se sabe, não é o forte de Putin. Mas a confirmação da eficácia da vacina dá a ele capital político nacional e internacional, depois da década perdida dos anos 1990, em que o país mergulhou na crise econômica pós-colapso soviético. A partir dos anos 2000, a Rússia começou a dar passos importantes rumo à expansão econômica e militar. Um senso de estabilidade e orgulho renasce e recebe certo reconhecimento do mundo - exemplo disso foi a Copa do Mundo de 2018.
Desde as primeiras semanas da pandemia, Putin colocou os centros de pesquisa da Rússia a buscar o imunizante. Vencer a corrida (e hoje, sabe-se, a Sputnik V, de fato foi a primeira) era para ele também uma forma de projetar poder e influência - seu produto já foi autorizado para uso emergencial em pelo menos 15 países. É esperança de nações pobres ou em dificuldades, como a Argentina.
A Rússia hoje, junto com a China, rivaliza com os Estados Unidos em termos de influência no sistema internacional e faz contraponto ao Ocidente - menos no campo econômico, papel ocupado pela China, e mais no componente militar.
Para o Kremlin, a vacina comprova a excelência de uma Rússia desprezada e frequentemente alvo de sanções econômicas e diplomáticas por parte de países ocidentais. Desta vez, a Rússia virou notícia pela capacidade científica e menos pela realpolitik, pelas tragédias militares (a lembrar o Kursk) ou pelo seu afã expansionista no entorno estratégico (leia-se Ucrânia e Geórgia, para ficarmos em exemplos recentes) - zona vital para o Kremlin.