O presidente dos Estados Unidos levou 61 dias para admitir a derrota na eleição de 3 de novembro e só o fez depois que seu governo praticamente implodiu depois da violência contra o Capitólio, na quarta-feira. Ameaçado de um segundo processo de impeachment, observando a debandada de altos funcionários e com processos criminais à espreita, Donald Trump pronunciou na quinta-feira (7) o discurso que deveria ter feito em 7de novembro, quando Joe Biden superou o número de delegados no colégio eleitoral que tornaram sua vitória incontestável.
Finalmente, o presidente foi à TV reconhecer a derrota e garantir uma transição de poder "suave, ordeira e contínua". Muito pouco para quem, desde o início de 2020, vilipendiou o processo eleitoral e testou os limites da democracia americana, alegando fraude, proliferando fake news, negando o resultado das urnas e, nas últimas semanas, conclamando seguidores para o dia D no Capitólio, gestando, assim a tempestade perfeita que se abateu sobre Washington DC em 6 de janeiro de 2021.
Palavras não apagam imagens e fatos do que houve no Capitólio na quarta-feira. Se presidentes americanos anteriores mancharam suas reputações em aventuras no Exterior - no Vietnã (Lyndon Johnson e Richard Nixon), na Somália (Bill Clinton) e no Iraque (George W. Bush) -, por exemplo, Trump se encarregou de afundar sua história no território americano, ao virar o canhão contra as próprias instituições americanas. Em última análise, atingiu seus próprios cidadãos.
Aliás, não só Trump parece embrenhado em uma operação tardia de salvamento de sua reputação. Depois do caos de Washington, o Facebook informou que vai manter o bloqueio das contas do presidente em suas plataformas, inclusive o Instagram, pelo menos até o final do mandato, em 20 de janeiro. O próprio Mark Zuckerberg, dono da empresa, anunciou a decisão, ao dizer que "os eventos chocantes das últimas 24 horas demonstram claramente que o presidente pretende usar seu tempo restante no cargo para minar a transição pacífica e legal de poder para seu sucessor eleito".
Mais uma vez, Zuckerberg e o Facebook tentam bancar de mocinhos e guardiões da democracia quando o prejuízo já é irreversível. Trump só foi bloqueado depois de passar semanas insuflando seus seguidores, entre eles extremistas dos Proud Boys e conspiracionistas do QAnon, conclamando-os a marcharem até o Capitólio para o que chamou de "dia de acertar as contas". Em outra rede social, no Twitter, o presidente chegou a convocar: "Grande protesto em DC em 6 de janeiro. Esteja lá, será selvagem". Conforme reportagem do The New York Times, radicais usaram, de novo, as redes sociais para orquestrar a violência: "Se você não está preparado para usar a força para defender a civilização, então esteja preparado para aceitar a barbárie", postou um membro do grupo Red-State Secession no Facebook, na terça-feira, véspera do dia 6. A página dessa organização encorajou seus 8 mil seguidores a compartilhar endereços de "inimigos" - juízes federais, membros do Congresso e progressistas. Não faltavam fotos de armas que eles pretendiam levar ao ato e menções a "ocupar o Capitólio" nos comentários.
Antes da eleição de 2016, o Facebook vazou milhões de dados pessoais de usuários para a empresa de consultoria Cambridge Analytica, usados para propaganda pela campanha de Trump. Nesses quatro anos insanos nos EUA, as redes sociais aprofundaram seu papel fundamental como canais de narrativas falsas disparadas pelo presidente e conspiracionistas. Nesse período, Trump fez muito para erodir a democracia dos EUA por dentro e o Facebook fez pouco para tentar impedi-lo. Nos dois casos, é tarde demais para salvar legados e reputações.