Há três meses em Brasília, o novo embaixador do Uruguai Guillermo Valles Galmés tem um sonho antigo que, agora, como representante do governo de Luis Lacalle Pou pretende ajudar a fazer sair do papel: a reativação da hidrovia Lagoa dos Patos-Lagoa Mirim. O trecho, segundo ele, é prioridade do presidente uruguaio uma vez que parte da produção agrícola do país vizinho poderia ser escoada pelo porto de Rio Grande, em vez de Montevidéu, barateando custos logísticos.
Nesta semana, Valles esteve no Rio Grande do Sul, apresentando a proposta ao governador Eduardo Leite e a representantes da indústria, comércio e setor agropecuário. Em entrevista à coluna, além dessa demanda econômica, ele abordou o combate ao coronavírus (o Uruguai se tornou exemplo de contenção do vírus na América Latina) e as preocupações sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia. A seguir, os principais trechos da conversa.
Quando os gaúchos poderão voltar a visitar o Uruguai? Vocês trabalham com alguma data para reabertura das fronteiras?
A covid-19 está sendo terrível para nós. O setor turístico é o mais afetado. Outras indústrias podem encontrar saída mas para essa (o turismo) é um golpe muito duro. Do ponto de vista econômico e moral, não podemos imaginar o país fechado. Vai ter um impacto enorme. Não há data (para reabertura das fronteiras). O controle da pandemia foi muito grande e exitoso no Uruguai até setembro. No final daquele mês, a curva começou a subir e, agora, a velocidade de transmissão do vírus, que estava abaixo de 1, indicando que estava controlado, chega a 1,4. É uma preocupação. Já saímos da faixa verde e estamos nos aproximando da laranja.
Isso se deve ao cansaço da população?
Sim. Primeiro, as pessoas estão cansadas. Segundo, já passamos o inverno. A primavera tem uma questão de liberdade, de abertura, relaxamento de costumes. E, em terceiro lugar, há muitas festas e algumas manifestações, com falta de responsabilidade, com organização de multidões, sem máscara, sem distanciamento. Grosso modo, é uma questão de relaxamento daquela disciplina. O Uruguai, diferentemente da Argentina, não teve uma regra geral de fechamento. O comércio continuou sempre aberto. A gente ficou em casa no primeiro mês por absoluta liberdade. Uma liberdade responsável, como disse o presidente. A escolha era entre o confinamento obrigatório e liberdade. Só fechamos escolas, educação primária, secundária e terciária, eventos esportivos e teatros, mas a vida econômica continuou porque o presidente foi bem claro desde o início. No dia 14 de março, ele disse: "Não tenho, como advogado, uma forma de tornar obrigatório isso (que as pessoas ficassem em casa). Não posso decretar uma norma se não tenho como fazê-la obrigatória". Em segundo lugar, ele acrescentou: "Como posso proibir as pessoas que precisam sair para trabalhar?" Pessoas que atuam na informalidade. Descobrimos uma população que atua na economia informal muito maior do que as estatísticas indicavam. Mas, para tudo, isso a resposta foi liberdade.
Como o governo está se organizando para distribuição da vacina?
O Ministério de Saúde Pública já fez uma reserva de vacina argentino-mexicana para a produção do produto desenvolvido por Oxford e AstraZeneca.
Pensam em começar a imunizar a população quando?
Isso depende do desenvolvimento, das provas de terceira fase das vacinas. Mas acho que não vamos ter impedimentos. Depende da autorização, de desenvolvimento da vacina e da produção.
O problema da sustentabilidade da produção do Mercosul é muito importante, mas os primeiros a estar preocupados com isso somos nós. Não necessitamos e não temos necessidade dos europeus (estarem preocupados)
Voltando ao tema da fronteira. Como foi a colaboração com as autoridades do Rio Grande do Sul e do Brasil para controle de ingresso de brasileiros? Haveria algo mais a ser feito na sua opinião?
O controle de entrada, com algumas exceções, por razões humanitárias (pessoas que estavam indo fazer algum tipo de intervenção cirúrgica), é exitoso. Há exceções ao fechamento, de negócios imprescindíveis, que foram mantidos. Acho que foi um exemplo de harmonização de protocolos na fronteira. Primeiro, o trabalho conjunto entre Rivera e Santana do Livramento, depois foi aproveitada essa experiência e estendida para Artigas e Quaraí. Está funcionando bem. Há desafios e dificuldades permanentemente. Mas o presidente Lacalle falou com Jair Bolsonaro no começo da pandemia: "Vamos trabalhar juntos na fronteira". Há um desafio aí porque em Rivera há os free shops, que atraem mais a população e estão abertos. Mas a cooperação é constante por parte das entidades sanitárias, dos ministérios de Saúde, e do trabalho conjunto das forcas de segurança. Acho que nada é perfeito, mas estamos com uma realidade exigente. Tem funcionado bem.
Como está sua expectativa em relação ao acordo entre Mercosul e UE. Depois da celebração, há preocupação com as exigências dos parlamentos europeus, que veem com reservas questões ambientais?
Já era embaixador quando começou a negociação, há 20 anos. E segui sempre de muito perto esse assunto, com diferentes cargos, inclusive como diretor de Comércio Internacional nas Nações Unidas, em Genebra. Temos de ter uma visão, uma estratégia de maratonista. Se ele tem uma corrida muito longa pela frente, não pensa nos 10 minutos à frente. Ele pensa qual será o próximo passo. O maratonista está concentrado no próximo passo. Temos de seguir essa mesma estratégia. Primeiro é necessário assinar o acordo, que, todavia, não foi feito entre os poderes executivos dos países. Esse é o primeiro passo. Depois, vamos de ter a questão da ratificação do acordo. Para ela, temos duas estratégias possíveis: um acordo comercial e de cooperação. São dois acordos em um só. O acordo comercial não precisa passar pelos parlamentos dos 27 países da UE, deve ir ao parlamento europeu. Isso já foi resolvido no caso do acordo UE-Singapura, foi resolvido pela Corte de Justiça europeia, que diz que a jurisdição da política comercial já não fica a cargo dos governos nacionais, é uma politica comercial supranacional. Acho que temos de trazer a razão (para o debate). Não a emoção. O problema da sustentabilidade da produção do Mercosul é muito importante, mas os primeiros a estarem preocupados com isso somos nós. Não necessitamos e não temos necessidade dos europeus (estarem preocupados). Fazemos coisas muito boas. Temos de trazer lógica, razão, a ciência da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), do Instituto Nacional de Investigacion Agropecuarias (Iniap), do Uruguai, o Instituto Nacional de Tencologia Agropecuaria (Inta), da Argentina para demonstrar que a produção de nossas carnes é a mais sustentável do mundo. Não temos nada de que ter vergonha. Temos de trazer argumentos lógicos. A agropecuária europeia conheço bem e respeito muito. São 100 mil toneladas de carne do Mercosul que poderiam entrar no mercado europeu. Quanto é a produção anual de carne de vaca na Europa? Cerca de 7 milhões de toneladas anuais. Mesmo do ponto de vista comercial, não há sentido questionar. Desmatamento da floresta por causa da produção de carnes? As quantidades, as magnitudes, são diferentes. Temos de trazer menos paixão e mais argumentos lógicos. Estou convicto de que a ciência pode demonstrar facilmente que nossos sistemas de produção são sustentáveis. A agricultura tem uma participação na emissão de gases que provocam o efeito estufa, mas não há comparação possível com a indústria, por exemplo.
O senhor fala sobre paixão. Uruguai e Brasil tem, agora, governos com a mesma orientação política. A Argentina tem um governos de esquerda. Paixões ideológicas comprometem a integração do Mercosul?
Eu não falaria, no caso do Uruguai, de direita, centro ou esquerda. Temos uma visão liberal da economia. Há muita identificação entre os governos uruguaio e brasileiro no fato de que a política econômica do Brasil é de abertura. Não começa com esse governo, começou já no com Michel Temer e nos últimos momentos da presidente Dilma Rousseff. O Brasil tem de se inserir na economia internacional. Em qual ritmo, quando ou como são outras questões. O Mercosul tem que se inserir. O Brasil não vai crescer com a economia exclusivamente de Uruguai, Paraguai e Argentina. Temos de ser realistas. Não é questão ideológica, é questão prática. A Argentina tem outra visão, não é muito diferente.
Sem comércio não vamos ter crescimento. Podemos ter crescimento interno, mas limitado. As necessidades sociais que temos requerem crescimento econômico e ele necessita de comércio internacional.
A Argentina com Alberto Fernández é mais protecionista.
Isso. Mas acho que, com todo o respeito a meus irmão argentinos, eles não podem sonhar em fechar o Brasil ao mundo. Eles podem querer fechar sua economia ou não abrir tanto ou controlar a velocidade de abertura. Mais devagar, compreendo. Mas a necessidade do Uruguai é muito diferente. Não podemos sonhar em ser uma ilha. Temos de entrar no mundo, e o Brasil também. Não podemos sonhar em fechar o Brasil para manter a preferência no mercado brasileiro. O mercado brasileiro tem a sua velocidade. Sem comércio não vamos ter crescimento. Podemos ter crescimento interno, mas limitado. As necessidades sociais que temos requerem crescimento econômico e ele necessita de comércio internacional. Não é ideológico, está estudado e mostrado. Fala-se que a Argentina está fechada. Não é isso, eles tem muito mais temor da abertura. Mas penso que a gente não pode sonhar que Brasil tem de permanecer fechado.
O senhor tem defendido a exploração da hidrovia Lagoa dos Patos-Lagoa Mirim. O quanto isso é importante para o Uruguai?
É um sonho antiquíssimo. Temos de fazer, porque há demanda econômica do Uruguai. É muito importante para poder escoar produção de soja, que não temos nas regiões de Cerro Largo, Treinta y tres. Não temos porque o custo para levar a produção dali até o porto de Montevidéu é maior do que do porto até Xangai. Essa produção tem de sair pelo porto de Rio Grande. Qual o problema? Dragagem. Qual o custo do obra? US$ 6 milhões. Isso é nada. Os portos de Montevidéu e de Rio Grande são concorrentes mas também são complementares. Algumas coisas devem de sair via ferroviária desde o centro do Rio Grande do Sul, passando por Santana do Livramento, Rivera e escoando pelo porto de Montevidéu. Em três anos, vamos ter uma rede ferroviária totalmente modernizada. O que é produzido no leste do Uruguai tem de sair por Rio Grande. É muito mais sustentável. Esses estudos existem há mais de 30 anos. É o momento de fazer. Deixar a ideologia de lado.
Que produtos uruguaios poderiam ser exportado por Rio Grande?
Não temos soja porque não podemos produzir devido aos altos custos. Há terras muito boas, produzimos gado e madeira. Essas poderiam ser terras agrícolas onde poderíamos produzir soja, cevada, milho que hoje não se produz porque os custos não permitem. Porque a logística não dá. A logística toda está pensada para sair pelo porto de Montevidéu, quando a saída deveria ser por onde for mais fácil.
O senhor falou com o governador Eduardo Leite sobre essa demanda?
Falamos. É uma prioridade para o presidente Lacalle Pou. O governador está muito a fim. Falamos com Farsul, Fecomércio, com o governo federal. A dragagem que é necessária é no sangradouro, no começo do Canal de São Gonçalo. E na entrada do acesso ao porto de Santa Vitoria de Palmar. É a concentração maior de dragagem. Não é muito custoso. E haveria vantagens extraordinárias imediatas. Esse será também um sinal político muito importante, para mostrar que os gaúchos do Uruguai e do Rio Grande do Sul estão pensando na visão regional, não na visão nacionalista do tipo: "a produção do Rio Grande tem de sair pelo porto de Rio Grande e do Uruguai, por Montevidéu. Não, tem de sair por onde for mais sustentável e barato.